segunda-feira, 26 de abril de 2010

recordações(2)

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José Queirós continua a evocar a sua infância, em S. Pedro do Rio Sêco

Naquele tempo não havia dinheiro para comprar nada, nem peixe, carnes ou frutas, comia-se o que produziam os campos. Se o ano vinha bom havia que economizar, mas se o ano era mau alguns perdiam a vergonha e mendigavam, e outros até roubavam. Muitos que eu conheço lá se criaram deste modo, e agora suspeito que já não se lembram. Porque agora tudo é diferente.

A ementa diária era, quase sempre, um caldo feito de batatas, cebola e couve, acompanhado de pão centeio muito escuro. Recordo-me de comer este caldo numa tigela, feita de um barro espanhol muito avermelhado, a que nós chamávamos o "caçoilo".

Algumas vezes fritava-se um pouco de toucinho de porco a que chamávamos chicharros. Esmagávamos as batatas cozidas na banha derretida do toucinho, e isso já era considerado um grande petisco. No verão, com umas caixas em cima de um burro, vinha, de vez em quando, um comerciante de Vilar Formoso, vender sardinhas. A nossa mãe comprava duas sardinhas as quais, a dividir por quatro, meia sardinha para cada um, era o que nos calhava nesse dia. Um ovo estrelado comia-se raramente; na primavera, quando as galinhas punham mais, ia-se vender os ovos no mercado do dia 8, em Almeida. Frutas havia no verão com fartura: figos, abrunhos, maçãs e peras. Havia uns abrunhos selvagens a que chamávamos “cagoiços” por provocarem frequentes diarreias. Bananas, vi-as eu pela primeira vez, já adulto, em Lisboa, e laranjas eram uma raridade.
Na mercearia da Senhora Laura, no Largo do meio-do-povo, comprava-se algum açúcar, o café de cevada e pouco mais.

E não desprezávamos os frutos e as ervas silvestres : as bolotas de azinheira, assadas, eram bem boas ( que a ti Luzia trazia de Espanha à espera de receber, em troca, um punhado de batatas), comiam-se as azedas que cresciam nos prados, e as meruges nos regatos. Havia as amoras das silveiras das quais guardo uma indelével recordação: foi uma vez que eu subi num muro de pedras soltas para as colher, e, qual a minha surpresa, o muro caiu, e eu sobre ele. As pedras marcaram-me para sempre o rosto com uma cicatriz. Nunca mais me esqueci do local, foi na Caleja do Ribeiro, e às vezes ainda me revejo a repor as pedras, e reparo numa delas que era muito arredondada, e julgo que foi essa a que me marcou.

(contínua)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Recordações (1)

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José Queirós, em 1983, começou a escrever as suas memórias. A Patricia oferecera-lhe um caderno onde ele começou a tomar notas, de uma forma simples e até algo desorganizada. Já depois da sua morte, vim eu a encontrar, entre os seus papéis, um maço de folhas, onde ele tinha organizado essas notas de uma forma mais finalizada, embora ainda com lacunas. São esses escritos que hoje se começam a publicar no blogue.


Guarda, abril 1986

Pediram-me para escrever alguma coisa sobre o passado, contar a história da minha vida. E foi para isso que a minha neta Patrícia me deu este caderno de folhas brancas. E eu fixo o olhar nestas folhas que me pedem angustiadamente para que nelas escreva qualquer coisa.

Mas escrever é sempre difícil para quem não sabe. Porque escrever é falar para nós, mas é também falar para os outros. Já tantas vezes aqui cheguei com o lápis afiado, e as palavras ficam presas nele, não querem sair, as ideias ficam coladas umas às outras, e, outras vezes, parece que querem sair todas ao mesmo tempo.

Da névoa do tempo começam a surgir vagamente algumas formas. Nas recordações deste tempo que confronto com os dias de hoje, vejo como tudo era o diferente. Aquele mundo da minha infância era o mundo velho: era diferente a maneira de comer e a maneira de morar nas casas, vivíamos com muito poucas comodidades.

Recuo aos tempos da minha meninice e vejo-me, aí pelos meus 6 ou 7 anos, num palheiro com os meus irmãos e a minha mãe. Quando se entrava, na parede, em frente do lado esquerdo, acendia-se o lume, e do lado direito estava uma cama com uma colcha vermelha de fabrico artesanal. Vivíamos nós neste palheiro porque a nossa casa, que ficava mesmo ao lado, estava arrendada para servir de posto da Guarda Fiscal. A renda era de nove mil reis, dinheiro que nos ajudava a viver. Ainda me lembro de ver os oficiais da Guarda que vinham a rondar os soldados, montados nos seus cavalos.

Mas os nove mil reis eram um gasto que a Guarda não queria, ou não podia, suportar; ou por que havia inveja daquele dinheiro, e logo se construiu uma casa, muito à pressa, para servir de posto da Guarda Fiscal. E lá voltámos nós à nossa casa. Por essa altura o meu pai, Francisco, estava emigrado em Buenos Aires na Argentina, onde já tinha ido pela segunda vez. Nós éramos três irmãos: o mais velho, o António, a Maria Augusta e eu.

A nossa mãe, recordo-me que trabalhou muito para nos criar; tinha que trabalhar para os outros, para que os outros, em troca, lhe lavrassem as terras. Sachar, mondar, semear tudo isso era com ela. Recordo-me que uma vez me levou para o Malavado, e nos pontões do rio Seco caí para a água, e a minha mãe tirou-me a fatiota e embrulhou-me com o avental. Algumas vezes quando ia trabalhar para o campo, deixava-me com a avó Margarida que ainda conheci, alta e magra.
(Contínua)

José Queirós