quinta-feira, 22 de março de 2012

Prenda de Casamento


Uma história familiar que saiu da pena de um grande amigo e de um grande escritor, o Carvalheira

Maldita a hora e o dia em que te saltou da cama assim de madrugada, ó Reta! Bem melhor andaras tu… Foi assim que falou uma sibila vizinha, quando chegou à Mata de Lobos a sentença do tribunal de Figueira. Que o cabo João Moutinho já nem às despedidas o deixaram vir. O nevoeiro do rio foi o principal culpado.

Os homens do contrabando passavam a Espanha rebanhos inteiros, de Poiares, dos Urros, de Ligares. E até de muito mais longe, no planalto.

Desciam de madrugada a calçada de Alpajares, sempre com pastor à frente para manter iludidas as borregas e levá-las ao engano. Atrás vinham os passadores, uma tropa. Seguiam a ribeira do Mosteiro por veredas de há mil anos, amalhavam no escuro debaixo duns negrilhos logo que aparecia o Douro, o resto era trabalho do barqueiro. Era um rebuliço que durava a noite inteira. Toda a gente o sabia em Barca de Alva, chegaram ordens do administrador do concelho, só restava à guarda armar-lhes a esparrela e dar-lhes as boas-vindas. Haveria guardas locais de mãos untadas, quem o sabe?! E foi essa a má sorte do Moutinho, a quem veio a calhar descer da Mata à frente duma patrulha.

Maldita hora aquela! A barca abicava ali num varadouro, e os homens viram logo que os fariseus eram madrugadores. Já havia gado posto a bom recato debaixo das azinheiras. Mas quando a barca voltou, tudo foi precipitado. A patrulha soltou vozes de prisão na altura do desembarque. Inesperadamente um dos meliantes respondeu a tiro, tresmalhando os bichos todos pelo areal. O ladrão do nevoeiro fez o resto. Num capricho da aragem a cerração aumentou, quando o Moutinho disparou a sarrasqueta foi o barqueiro a cair. Mal se pode imaginar ali a babilónia. E, bem ou mal, degredaram-no para Angola.

 Meterem-no num porão ali na boca do Douro, numa manhã cinzenta, foi para a família toda uma calamidade. Mas a Maria Dolorosa Reta, com três ganapos na mão, tratou de engolir as lágrimas, farta ela de saber que a rodeira do destino anda para cima e para baixo. Enrijou-se nos costados e aguardou.

Quando em 1906 se pôs a caminho de Luanda para se juntar ao marido, também foi embarcar à foz do Douro. E levava pela mão a filha Laura, ainda uma criancita. Antes disso fez uma venda fantástica de quanto possuía em Riba-Côa. O mais eram courelas em S. Pedro, a dois passos da fortaleza de Almeida, já a fugir para Castela. Que a pena de João Moutinho não cobria a vida inteira, não era ainda a sentença da eternidade.

Fosse amiga a padroeira, a Virgem dos Bons Sucessos, e um dia lhe voltariam à mão. O Porfírio e o Laureano, ao tempo já espigadotes, lá tinham seguido a rota das aves de arribação. Custou-lhe os olhos da cara, mas lá foram.   O primeiro veio a fixar-se no Congo Belga. O segundo desceu Castela abaixo, cruzou a Estremadura, foi embarcar em Cádiz. Deu à costa na Argentina, foi encontrar melhores ventos em Santa Rosa, Las Pampas, onde gozou vida longa. Do outro lado do mar congraçou-se um dia Laura com Sebastião, funcionário da alfândega de Luanda. E se a comunhão de idades cauciona boas-venturas nos casamentos fidalgos, muito cedo se mostrou, neste correntio caso, que homem velho e mulher nova dão filhos até à cova. Bem depressa eram já três, e quem mais neles mandava era o compasso das luas.

E assim ficou, até ver. Oito anos cumpriu Moutinho a excomungada pena. Foi então a vez de Reta arrebanhar a família e tocá-la para S. Pedro, onde estavam à espera umas courelas. Mas não desandara ainda o alcatruz da fortuna.  A maldita pneumónica não poupou Sebastião. Mal tinha vinte e seis anos e já Laura era viúva. E agarrada às suas saias, a filha Aida, ainda uma criancita. Será dela que eu um dia hei-de nascer, quando me chegar a vez.

Por enquanto ainda é cedo. Porque agora vai casar-se o Laureano com a Maria Schneider, em Santa Rosa, Las Pampas. Em breve se fará dona a rapariga, e bem precisada vem, que tem só dezasseis anos. Mas é bonita e fecunda, conforme se verá, dando-lhe o tempo. É um fruto exótico dos alemães do Volga, uns teutões que entram aqui na história porque a Grande Catarina os levou a desbravar as estepes do Cáspio, há-de haver duzentos anos. Mas os atalhos da vida tresmalharam-nos, e o mundo não era ainda a pequenez que é hoje. Lá foram parar à América, ao Brasil… no nosso caso às Pampas da Argentina, para o Laureano encontrar a cama feita. Tão bem feita a cama estava, que nela fizeram ambos vinte e quatro filhos. E foi um neto deles a surpreender-me há tempos, embuçado nas névoas da Internet. Andava ele à procura de inculcas de S. Pedro.

Um bisneto do Moutinho, fruto cruzado da Mata de Lobos e das estepes do Volga, que o ladrão dum nevoeiro no Douro juntou em hora aziaga! Um dia destes, nas neblinas da Irlanda, vai ele casar-se em Belfast.

Já comprei um fato novo. E guardo ali, no saco de viagem, a prenda de casamento.