terça-feira, 4 de abril de 2017

Alcides 4 - As esculturas

Comecei a arte de escultor já depois que me ter reformado. Quando atingi os sessenta e cinco anos, eu não tinha reforma nenhuma, não descontava nada. Os mestres antigamente não pagavam. Quem ia aprender é que tinha de pagar. Eu não paguei, mas aprendi a arte. Queria pagar para a reforma, porque eu pensava já no futuro. Pensava “agora, ainda posso trabalhar, mas quando chegar a velho, só os funcionários do estado é que têm as reformas.”. E eu quis pagar, mas não podia. Porque não trabalhava por conta de ninguém. Trabalhava por minha conta e não tinha direito a pagar. Quando eu soube, já tinha saído uma lei que era a lei dos independentes. Então, fui daqui à Guarda a tratar de me inscrever. Lá falei na Segurança Social, inscrevi-me. Paguei esses dois anos atrasados desde que já tinha saído a lei. E paguei o juro desse dinheiro que devia ter entrado. Com isso consegui uma reforma de trezentos euros por mês, que é o que agora recebo. Na altura até eram vinte e nove contos. Quando ainda eram contos. Ainda era em escudos. E então eram vinte e nove contos. Depois, daí para cá tem vindo a aumentar. Que eu agora recebo trezentos...euros. Agora, já é em euros.

Isto passou-se em noventa e seis, salvo erro. Tinha vontade de trabalhar. Ainda me sentia com força e nunca gostei de estar parado. E então agarrei numa peça aqui, noutra ali...Só foi imaginação, mais nada. E vontade de trabalhar. Tudo o que fazia no serviço, era sempre com paixão e com vontade de trabalhar.

Ocorreu-me a primeira ideia, quando me lembrei dos tempos em que estava solteiro que ia para a fonte, atrás das raparigas. Elas levavam o cântaro à cabeça e a gente ia atrás delas. Houve uma vez que até se partiram os cântaros. Lembrei o tempo de novo. Que a gente, não é como agora, que não entrava com as raparigas aí em qualquer lado, em cafés. Nem cafés havia. E então quando as apanhava é quando iam à fonte, encher o cântaro lá para baixo para o arrabalde. E a gente é que as acompanhava com um bocadinho de conversa. E ao domingo, quando ia à missa. À saída da missa. Não havia liberdades como agora. Que era para vir dar o passeiozinho com as raparigas pela rua de Almeida, para elas depois irem para casa. Só dávamos aquela voltinha. Não havia outra hipótese de andar com elas Ou ir vê-las quando elas iam com os cântaros à cabeça, quando iam à fonte, não é? E ficar a espreitá-las.Não eram só as garotas, as novas. Também iam as velhas. Precisavam de água e não havia água nas torneiras. Almeida só teve água canalizada em 1951. Em 1949, que eu fui à inspeção, estavam as ruas de Almeida abertas, para meter os canos. Mas tudo isto levou o seu tempo...um ano ou dois. E nessa altura, mais ou menos em cinquenta e um, é que Almeida teve água canalizada. Mas não era em todas as casas! Era só em quem a requeria.Porque depois...Há um que não meteu, depois tinha de pagar para lhe abrirem


As mulheres com o cantaro á cabeça Foi a ideia para a primeira peça que eu tenho ali. Desenhei-a, mas de modo diferente do desenho No papel é só uma frente. E na madeira é preciso desenhar quatro faces. É preciso desenhar a frente, as laterais e a retaguarda. Eu sabia trabalhar a madeira com os seus feitios, os revessos, o correr e os truques. E, claro,  alçar as ferramentas, as serras e tudo.  Eu não ia para uma obra sem trabalhar com as ferramentas. .. Mas muito tive que riscar. Imaginei as mulheres.

Cada peça era diferente. Há peças que levavam, por exemplo, um dia ou dois. Outras demorava quinze ou vinte dias. Era conforme a peça, o tamanho, o modelo, o desenho... Há peças... E o tronco com que vou fazê-las. Tenho lá algumas que eu me vi aflito, muito pesadas, para pôr em cima do banco. Porque eu tinha que as trabalhar em cima do banco. E para empinar os paus, com um tronco grande. Tinha de estar por cima do banco e depois podia trabalhar. E por cima do pau ia imaginando, ia cortando. O que havia de cortar, o que havia de fazer... E assim sucessivamente.
 Não importava qual era a madeira ou pensava “Para esta peça...eu quero este tipo de madeira

Era conforme as madeiras que tinha, mas que fossem boas, próprias para esculturas. Porque a madeira de pinho, que era o que nós utilizávamos mais antigamente, eu não utilizava para coisa nenhuma. Só para carpintaria... não presta.era madeira nacional. Era oliveira, o freixo, o negrilho...O salgueiro-branco ou vidoeiro que é uma planta que tem a casca como de prata, e é roxa. E até a folha é medicinal.


Eu pensava em fazer uma mulher, em madeira, que é na madeira que trabalho. Pensava em fazer uma mulher, conforme os trajes que usava. Porque se a senhora for a ver os que lá tenho, umas estão de avental, outras estão de xaile. Até lá as tenho com xailes de seda, com colares de pérolas. Também iam vaidosas à fonte! Não eram só as criadas, não é? Uma ou outra ia muito bem vestida. Lá as tenho ali. Imaginei e trabalhei o xaile, com as flores, o colar de pérolas, e assim sucessivamente. E para cada uma imaginava o feitio que havia de fazer. Outras de avental, com as mãos nos bolsos... Conforme lá estão feitas.

Fiz tudo com prazer. Não fazia trabalho nenhum que não fosse por prazer. Se não tivesse prazer numa ocasião, já me... Chateei-me. Estava a fazer uma. Tive o azar, parti-lhe um bocado. Não queria colar. Não queria peças coladas. Tudo o que lá está é tudo inteiriço. Agarrei no machado, escavaquei-a. Pronto, já não faço mais. Mas passado dez ou quinze minutos, já estava a arranjar outro pau a começar outra. Comecei outra de novo e não a estraguei. Eu lembrava-me de fazer conforme os trajes. As velhas de capa. Usavam umas capinhas, as velhas, com aquelas saias muito largas, que andavam por baixo dos joelhos. Também fiz as minissaias.

Também lá estão duas minissaias. Depois, mais tarde, já havia meninas já com minissaia. Depois, as outras compridas, com aqueles xailes pretos, com uma franja a arrastar.


Conforme me vinha à ideia, assim eu fazia as imagens, as esculturas. Faço qualquer coisa. Tenho é que imaginar primeiro. Antes de começar a trabalhar, tenho de saber o que vou fazer. E depois de saber o que vou fazer, tenho que olhar para uma peça de madeira e ver se dá para fazer aquilo que eu quero.

Fiz peças que não são parecidas com nada. Eram imaginadas. Imaginações que eu tinha e fazia a peça.Eu imaginava o que queria fazer. Então, com a ferramenta cortava onde queria, deixava a madeira mais grossa ou mais fina. Dava-lhe os feitios que queria. Com as ferramentas, faço tudo. É tudo inteiriço. É tudo esculpido na própria madeira. E depois era conforme o... Desenhava. Algumas, desenhava. E outras, no próprio momento que estava a fazer, é que imaginava e desenhava já na própria madeira. Porque a gente depois de saber trabalhar a madeira, tem que saber as voltas que lhe há-de dar, e como há-de cortar, e aonde... Tudo tem conforme o que a gente quer fazer. Aquilo tem um bocado de ciência e de imaginação. E vontade de trabalhar!

Porque eu a arte sabia-a bem. Sabia muito bem trabalhar. Que eu ainda estive uns anos sem trabalhar na madeira. Porque depois pus comércio, de vendas de mobílias e outras coisas. Mas não foi muito tempo, isso. Depois atingi a idade. Fiz a casa. Esta casa onde vivo. Fi-la eu toda, porque também trabalhava nas casas. Eu, o arremate, por exemplo, de uma casa era eu que fazia.
Sr. Alcides: Não, porque eu não sei dar valor a esta peças . As pessoas não sabem dar valor às peças que eu tenho. Tem lá peças de muito valor, que nem eu sei o valor delas.
Porque...vieram aí uns senhores... Não sei se já lhe contei. Aquelas peças grandes... E procuraram saber o valor delas. Eu disse “Não, eu não fiz isto para vender.”. Nem olhei ao tempo. Tanto me dava se estava oito dias, como quinze, como vinte. Começava a peça e tinha que a acabar. Não olhava ao tempo que estava a trabalhar.
Sr. Alcides: Ah, pois. Eu estava a fazer as coisas com gosto.
Sr. Alcides: Sentia alegria em fazer o trabalho. Ainda agora.
Sr. Alcides: Ainda agora. Olhe, pus uma peça no banco que ainda era para a fazer.

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