sábado, 10 de junho de 2017

Eduardo Lourenço , homenageado em S. Pedro do Rio Seco, Agosto 2011

Abertura

Estamos aqui hoje reunidos para homenagear um conterrâneo nosso, o professor Eduardo Lourenço, o Dr Eduardo como sempre foi conhecido e tratado aqui em S. Pedro. Que nasceu aqui bem perto deste pavilhão, numa modesta casa de aldeia, e numa época bem diferente daquela em que hoje vivemos.
Foi no final do Verão passado que nos reunimos, eu próprio, o Manuel Alcino Fernandes , presidente da Junta de freguesia e o Dr Adriano Lourenço, e foi nessa reunião que nasceu a ideia desta homenagem.
Entendemos, nesse encontro, que este era o momento certo para evocar o Tempo de S. Pedro de Eduardo Lourenço. E, a Associação Rio Vivo, porque entendeu a importância do significado desta homenagem, assumiu-a como um dever, e ousou, com a sua pouca valia e os seus escassos recursos apadrinhá-la e apoiá-la.
A ideia inicial, era uma homenagem limitada ao âmbito da aldeia, mas logo ela extravasou alimentada pela grandeza e pelo prestígio do homenageado, e acabou por assumir uma dimensão nacional para a qual a Associação Rio Vivo não estava preparada nem dimensionada. Mas isso apenas mostra a grandeza do homenageado, que ao aceitar com a sua humildade este tributo quis mostrar o reconhecimento e apreço pela terra que o viu nascer. S. Pedro do Rio Seco é hoje uma aldeia orgulhosa por ter entre os seus filhos um dos maiores pensadores do nosso tempo...
Agradecimentos.
Em primeiro lugar à Camara Municipal de Almeida, que executou os trabalhos de preparação do local e contribuiu com a tenda onde decorrerá o o convívio, se prontificou a apoiar, na pessoa sdo seu Presidente , vereadores e e demais colaboradores.
a Junta de Freguesia de S. Pedro do Rio Seco, que oferece o lanche e, desde o primeiro momento, nela se empenhou na pessoa do seu Presidente da Junta. E a gente de S. Pedro associou-se na sua preparação.
Não posso deixar de referir as pessoas da Associação Rio Vivo, em particular o Jorge Carvalheira, o Zé e a Caetana, jovens que vieram repovoar s. Pedro e trazem consigo uma lufada de ar fresco e o sangue novo de que a aldeia tanto precisa. o Tó Pigas, e outros jovens e velhos.
E o Centro de Estudo ibéricos, cujo presidente honorário é Eduardo Lourenço, logo se associou assumindo um imenso trabalho na preparação e divulgação para que esta homenagem fosse possível. A exposição de textos e fotografias que está patente neste pavilhão, resultou de um trabalho conjunto do Dr Adriano Lourenço e dos técnicos do Centro de Estudos Ibéricos. Quero destacar o envolvimento activo e entusiástico do Dr António José de Almeida que aceitou ser o comissário desta homenagem, E o Dr Vergílio Bento a Dra Alexandra Isidro que coordenou todo o trabalho administrativo para que este evento se tornasse possível.

A presidir à Comissão de Honra está o Dr Guilherme d´Oliveira Martins, um amigo e um conhecdor da obra de Eduardo Lourenço, que logo e de forma entusiasmada aceitou o convite que eu próprio lhe dirigi . O facto de o ter aceite, muitos nos honrou, e por isso também lhe agradecemos Os restantes elementos da Comissão de Honra foram escolhidos e convidados por ele, alguns por sugestão do próprio homenageado . É uma lista de individualidades impressionante que integra pessoas notavéis, portuguesas e estrangeiras da literatura, da arte, da cultura, da politica, da vida pública que cruza diferentes sensibiliddaes, lista erssa que poderia integrar muitos outros nomes. Isto porque Eduardo Lourenço, e hoje um denominado comum do pensamento Universal, que se situa muito acima das posições de grupos.

Foi também o Dr Guilherme d´Oliveira Martins que sugeriu o prestigiado artista Leonel Moura, que de uma forma entusiasta se prontificou a projectar o monumento. E não posso esquecer o contributo do arquitecto Henrique Dinis da Gama, pessoa de apurado gosto, de rara sensibilidade , e de com um grande sentido estético e fino trato diplomático, ele também amigo do homenageado, e que com as suas ideias e sugestões contribuiu para melhorar o obra artística final.

A todos o nosso obrigado.

Aos presentes que vieram de longe oferecemos o que temos e o que podemos. Aceitem as nossas limitações e o desconforto e a precariedade dos nossos meios com espírito de sacrifício e entendam-no como um sinal da austeridade do tempo presente a que vamos ter de nos habituar

S.Pedro de outros tempos

Não me vou alongar nesta introdução, a tarde alonga-se e o tempo deve ser guardado para outros que mais e melhor ilustrarão esta sessão.

O tempo que hoje aqui evocamos é o tempo de S. Pedro de Eduardo Lourenço, o tempo de uma infância, aqueles anos, na expressão do homenageado, em que nós estamos no mundo e o mundo está em nós.

Se olharmos para esta aldeia o que vemos hoje não tem nada a ver com a aldeia dos anos 20 e 30 onde se inclui o tempo da infancia de Eduardo Lourenço.

S Pedro do Rio seco, é uma pequena aldeia do concelho de Almeida, situada na região de Ribacôa, um território que se situa entre o Rio Côa e a raia de Espanha.

Esta região de situa-se num planalto, continuação natural da Meseta Ibérica que lhe fica a leste. É limitada, do lado ocidental, pelos penhascos do vale do Côa, e a sul pela serra de Malcata, no maciço da cordilheira central ibérica. A norte, destaca-se a silhueta da Marofa, já nos contrafortes do vale do Douro.

São fracos os recursos destas terras: o solo é pobre, a água não é abundante, e o clima, muito frio no inverno e muito quente no verão, é extremamente agreste. Como nota dominante da paisagem, abundam os afloramentos graníticos (os barrocos como aqui lhe chamamos), as giestas, as moitas de carvalhos e as carrasqueiras. E, sempre presente, o pinheiro bravo.

Nos primórdios da nacionalidade, esta região fronteiriça, disputada entre Castela e Portugal, era uma zona de castelos defensivos: Castelo Bom, Almeida, Castelo Rodrigo, Vilar Maior e Alfaiates; terá sido mais intensamente povoada a partir de 1296, ano em que foi definitivamente integrada no território português, após o tratado de Alcanizes.

Tradicionalmente, as gentes desta região dedicavam-se sobretudo à agricultura e à pastorícia: colhia-se batata, trigo, centeio e algum vinho.
Produzia-se queijo de ovelha, cada família criava o seu porco e as suas galinhas, que circulavam livremente pelas ruas e regressavam aos poleiros na hora do crepusculo da tarde. Uma pedra colocada na entrada impedia investidas da zorra matreira que caso tivesse acesso ao galinheiro muitos estragos haveria de fazer. A aldeia era auto-suficiente em cereais, lenha, madeira, frutos e hortícolas. Havia uma dinâmica actividade complementar de serviços: o merceeiro, o taberneiro, o sapateiro, o alfaiate, o pedreiro, o ferreiro, o carpinteiro, o barbeiro...

A casa agrícola típica de S. Pedro desenvolvia-se à volta do curral com a residência e o seu cabanal, as cortes, os cortelhos, os palheiros, a adega e a “tenade” onde se guardava a lenha. O lavrador desenvolvia a sua actividade apoiado na junta de vacas, de machos ou de burros, conforme a dimensão da sua lavoura. O carro de bois, que era diferente do minhoto, estacionava no curral. Os terrenos da exploração agrícola (as sortes, as tapadas, os hortos, as vinhas, os lameiros) eram de pequena dimensão, e estavam dispersos pela folha, muitas vezes afastados uns dos outros .

Não havia conforto nas habitações: entrava-se no meio-da-casa e de um lado estava a cozinha (em certos casos de telha vã e sem chupão de fumo) com o seu basal e a cantareira, e com uma pequena dispensa onde estava a tulha e a salgadeira; do outro lado do meio-da- casa, uma pequena sala com dois quartos (as alcovas) onde apenas cabia a cama. Não havia casa de banho, apenas um lavatório na sala com o seu jarro e um espelho na parede. Nalguns casos, sobre a sala e as alcovas, havia o sobrado onde se guardavam as colheitas para o uso da casa.

Desde há meio século tudo isto mudou, e um modo de vida que se tinha aperfeiçoado durante seis séculos desapareceu completamente. A casa agrícola deu lugar a uma casa moderna com o conforto das casas das cidades, muitas vezes servindo apenas como segunda habitação. O automóvel tomou conta das ruas, os animais de trabalho desapareceram, o asfalto substituiu a terra batida, ou a calçada de pedras roladas, apareceu a electricidade e o saneamento, A autarquia, entretanto, construiu um moderno pavilhão multiusos, rasgou estradas, plantou árvores, embelezou largos com jardins.

Como resultado da fuga para as cidades, a população permanente que, no tempo da infância de Eduardo Lourenço, era de cerca de 700 pessoas reduziu-se a pouco mais de 150 habitantes, a maior parte com mais de 65 anos. A escola fechou por falta de alunos. Resta um pequena actividade agrícola, quase um passatempo dos reformados, centrada nas hortas de proximidade. Cuidar dos velhos no Centro Social é, agora, a principal actividade dos poucos que trabalham na aldeia. A folha está praticamente abandonada, sendo a excepção a existência pequenas manchas dispersas de exploração florestal (de pinheiros de cupressus ou azinheiras), e algumas explorações pecuárias (de vacas e ovelhas), tudo a viver com apoios comunitários.

No mês de Agosto a aldeia ganha a vitalidade de uma estância turística. Emigrantes enchem a terra, cria-se uma ilusão de vida. E alguns vêm nisto um sinal de progresso, e acreditam que se está a prosseguir no caminho certo.
Mas esta aldeia está ferida de morte e não tem futuro: os residentes desaparecem, e outros não vêem para os substituir; os filhos dos emigrantes não virão ocupar as casas que os pais construíram. Os dinheiros do estado social vão escassear, os fundos comunitários também. É este o angustiante paradoxo do nosso tempo: as cidades não são a solução para o futuro, e as pequenas comunidades rurais perderam a sua sustentabilidade.

Nascida da vontade de uns quantos, a Associação Rio Vivo foi criada para perceber como foi possível chegar a este ponto e para intervir, da forma possível, para inverter esta tendência depressiva. No fundo, para ajudar a cuidar dos velhos e estudar a forma de reanimar a aldeia. Para impedir que ela morra...

"Reunidos em S. Pedro do Rio Seco no dia 9 de Agosto de 2009, um grupo de gente de s. Pedro manifestam a intenção de constituir a Associação Rio Vivo. Através dela, e em pleno respeito pela Natureza e pelo uso racional dos seus recursos, propoem-se contribuir para preservar o património cultural, as formas de vida, as tradições, os usos e os costumes que herdaram dos seus ancestrais.

Declaram-se conscientes dos graves problemas que afectam o equilíbrio do planeta, e ameaçam pôr em causa a vida tal como a conhecemos: a poluição ambiental, o aquecimento global, as alterações climáticas dele resultantes, o rápido esgotamento de recursos naturais como a energia de origem fóssil, a terra arável, a água e outros. Estão preocupados com a extinção acelerada de espécies animais e vegetais, e com as ameaças que pairam sobre a diversidade biológica.

Num mundo globalizado, e particularmente na sociedade portuguesa, assistiu-se em poucos anos a uma rápida destruição dos modos de vida e dos equilíbrios tradicionais, sem que outros mais sustentáveis tivessem surgido. A fuga das populações rurais em busca de melhores condições de vida, e a sua concentração acelerada em subúrbios urbanos marcados pela precaridade, o desenraizamento e a fragilização, despovoou o interior e esvaziou as pequenas comunidades rurais.

Acreditam que as pequenas comunidades rurais poderão vir a desempenhar um papel importante no futuro e que é fundamental tomar consciência dos perigos que ameaçam a Humanidade, e das nefastas consequências do esgotado modelo do crescimento contínuo e do consumismo moderno. Crêem estar em vias de exaustão o privilégio histórico das energias fósseis baratas, que permitiu às gerações do último século um desenvolvimento e um conforto nunca experimentados. Acreditam que é seu dever deixar às gerações futuras um mundo habitável. E crêem ser fundamental reconstruir alguma da auto-sustentabilidade alimentar e energética das pequenas comunidades rurais.

Acreditam ser necessário desenvolver activamente um novo modo de vida, um modelo de transição para uma era pós-carbono. Tal desiderato deve ser perseguido no respeito pelas pessoas, com as suas crenças religiosas, as suas opções políticas e os seus direitos próprios. Mas abrir caminhos novos implica contrariar as actuais tendências e mudar as mentalidades.

Como primeiro passo para atingir os objectivos propostos, os signatários assumem conjuntamente o compromisso de constituir, em S. Pedro do Rio Seco, uma Associação de pessoas que comunguem dos mesmos ideais, e alimentem os mesmos propósitos.

Chegaremos a tempo?

A angústis do futuro

Naquele tempo do inicio do século passado, no tempo de S. Pedro de EL, os nossos avós imaginavam o mundo de hoje de de uma forma muio diferente daquela que ele veio a evoluir.
É certo que, nesses anos, a data "2000" era uma data mítica, a qual era vista, em simultâneo, como fim de século e como fim de milénio.

Isso, julgo eu, ajudava a inflamar as mentes. Ora, o tempo futuro parece sempre mais extenso do que o tempo passado. A nossa mente habitua-se a olhar para uma data futura como representando uma “distância” enorme, a qual, depois, nos parece muito mais curta do que havíamos imaginado. Quando apareceu o “1984” de Orwell ou o filme “2001, Odisseia no Espaço” de Kubrick, parecia que o tempo que faltava, haveria de permitir realizar todos os sonhos. E, afinal, essas datas, vistas agora pelo "retrovisor" do tempo, estavam “logo ali”.

Nas previsões desses anos, sobressai uma crença ilimitada na tecnologia. A electricidade é ali apresentada como uma coisa milagrosa. Falava-se ingenuamente de navios movidos a electricidade cruzando o oceano, como se a electricidade pudesse ser transportada a bordo de um navio. E, constatamos hoje, a incapacidade de, nesse tempo, se perceber aquilo que foram os verdadeiros grandes saltos tecnológico: a televisão, a informática, a internet, e até o avião.

O carvão era a forma energética que tinha revolucionado o mundo, tinha permitido o aparecimento do comboio e dos paquetes transocânicos, e tinha conduzido ao progresso e facilitado as grandes correntes migratórias, mas que já se apresentava como uma coisa do passado, algo sujo e desinteressante. E que, acreditava-se, a energia eléctrica iria tornar obsoleto. O petróleo era conhecido mas o seu potencial estava por adivinhar. E o nuclear como fonte de energia, nem sequer era imaginado.

Nos anos da viragem do século XIX para o século XX, o mundo ainda estava extasiado com os ecos da Exposição Universal de Paris, e vivia-se uma revolução tecnológica. Parecia não haver limites para os sonhos do homem. Júlio Verne, melhor que ninguém, encarna esta visão nos seus livros. Entre nós, ficou-nos a “Cidade e a Serras” do nosso Eça que confronta o “novo mundo”, isto é, a civilização com o campo, ou as serras. E que, ao arrepio da tendência dominante, toma partido pelo campo, e desaprova as “modernices” de Jacinto que morava em Paris, nos Campos Elísios, e já tinha elevador na sua casa.

Não se falava de limites do crescimento, e questões como o esgotamento dos recursos, como a poluição ou o aquecimento global, nem sequer eram afloradas. Falava-se do progresso, dum Mundo super-organizado mas não se antecipavam os custos da complexidade que lhe iriam estar associados.

O homem está hoje menos optimista, vive mais angustiado. E, já ninguém imagina o futuro como a “reconstrução” do Éden. Já não temos Júlio Verne, mas temos os livros e os filmes que nos falam do colapso (2012) e nos mostram as ruínas das grandes cidades depois de cataclismos, das pestes, do extermínio nuclear, de novas idades de gelo.

O mundo de hoje, ao invés do mundo de há 100 anos, é um mundo mais pessimista em relação ao futuro, e, infelizmente, parecem sobrar as razões para que o seja.

As previsões de há cem anos inspiravam-se na crença de que a evolução tecnológica e o progresso do conhecimento não teriam limites, e que ao desvendar os segredos das Ciências e ao dissecar as células microscópicas, o Homem iria explicar as origens da Vida, e penetrar nas profundezas da Alma. E adquirir a sapiência e o poder, que antes só eram atributos dos deuses.

Mas o mundo dos últimos 100 anos não teve aquela "suave" evolução que se esperava. Foi antes uma espiral de acontecimentos contraditórios, em que os sucessos eram, muitas vezes, submergidos pelos insucessos. Descobrimos a penicilina, é verdade, mas tivemos o holocausto, eliminámos a varíola, mas viu-se massacrar gente, em África e noutras partes do mundo. Produzimos e consumimos mais e andamos mais depressa, mas estamos, por causa disso, a esgotar os recursos e a destruir o ambiente.

Libertámos a energia do átomo , e com ela já se mataram pessoas; descobrimos o o código do ADN, e com esses conhecimento, já "manipulámos" genes de animais e plantas.

E quando parecia que estávamos a atingir o paraíso, vimos o planeta reagir furioso parecendo contrariar o nosso desejo. Surgiram, quando menos se esperava, os tornados, os furacões, as enchentes, os tsunamis e enfrentamos o aquecimento global. E o planeta até já se nega a que lhe retirem das suas entranhas o “sangue” negro que alimentou a nossa expansão, o “excremento do diabo” como alguns já lhe chamaram.

Por isso eu não me atrevo a fazer previsões para os próximos 100 anos. Já me contentaria que alguém mas mostrasse para os próximos 5 anos. Porque, acredito, muita coisa se irá decidir neste curto prazo. Mas só pensar naquilo que "não" poderá acontecer no século que temos pela frente, já se torna preocupante. E isso eu posso prever:

• A população “não” poderá voltar a multiplicar por quatro, como aconteceu nos últimos 100 anos.
• O aumento progressivo da concentração de CO2 na atmosfera “não” pode continuar.
• "Não" se podem continuar a destruir espécies como temos feito até agora.
• O consumo de energia fóssil, barata e abundante, “não” continuará a crescer.
• "Não" se poderão continuar a desperdiçar recursos escassos, a começar pela água.
• Os economistas “não” vão ser capazes de resolver os problemas económicos do mundo. Isto porque o mundo do futuro vai passar a ser dominado pela física e não pela economia

Não podemos prever o futuro das coisas
Elas são imprevisíveis!
A fronteira entre a ordem e o caos
É o bater das asas de uma borboleta...
A amena fogueira dá lugar ao incêndio devastador
A brisa suave dá lugar ao tornado assustador
A chuva serena dá lugar à enchente destruidora
E ao doce crepúsculo, segue o dia claro ou a noite de trevas...

Temos de, com urgência, procurar novas alternativas para continuar a assegurar prosperidade à raça humana. E se isso não for possível pela via material, terá de sê-lo pela via espiritual.

E com este pensamento, regressemos a Eduardo Lourenço que é a razão que aqui nos traz hoje...
A sua sabedoria, a vitalidade do seu pensamento, deverá ser um estimulo e uma bússola para encontrar a saída deste labirinto que já não é só de saudade, mas que parece começar a ser de sobrevivência… Será que ele nos saberá indicar o caminho?

Armando, irmão e amigo


Quando se convive de perto com uma pessoa, quando a vemos crescer e envelhecer ao nosso lado, a  vida dessa pessoa, de alguma forma,  passa a fazer parte de nós próprios. Por isso é, ao mesmo tempo, fácil e difícil  falar dela. Fácil, porque se conhece bem, mas difícil porque ficará sempre muita coisa por dizer.
 
O Armando é  um homem cheio de qualidades: é inteligente e observador perspicaz, tem um sentido muito crítico sobre as coisas e uma perceção única do meio envolvente. É um psicólogo nato. Retrata por vezes de forma acutilante e implacável - mas sempre tolerante e bem humorada -  as pessoas que o rodeiam.

Ele sabe partilhar como ninguém as suas experiências de vida, relata com um sentido de humor e com vivacidade e minúcia essas experiências. E eu, que sempre o ouço com interesse e com agrado, às vezes mesmo com entusiasmo, partilhei com ele muitas das suas vivências, e, sem sair da comodidade da minha casa,  participei do seu dia-a-dia,  e até fiz muitas viagens à sua custa.

Ainda adolescente, comecei a conhecer Portugal pelos olhos dele, e foi ele que me mostrou o mar pela primeira vez quando fomos,  com o Mendonça, fazer uma viagem pelo litoral, onde visitámos as praias os areais imensos que calcorreávamos descalços convencidos que íamos endurecer e calejar os pés para melhor enfrentar as frieiras dos duros invernos da Guarda.

Trabalhei com ele na loja "F. Gião" onde conheci o Sr. Nascimento,  para quem consertar um rádio não tinha segredos, o gerente Sr. Amílcar, algo enigmático, o Sr. Flores, que veio para o Sanatório da Guarda e se fixou na cidade, e o Chico que era um jovem aprendiz natural de uma aldeia sobranceira ao vale do Mondego.

Mais tarde, desembarcamos os dois em Cabinda nos batelões da tropa quando fomos, em missão de soberania,  ocupar o edifício abandonado de um velha missão junto à fronteira com o Congo Francês. Lembro-me bem do Belga, que vendia gasolina aos militares, e do padeiro que nos comprava farinha e nos vendia o pão. Comemos o Bife da Casa nas surtidas que fazíamos à cidade, e, juntos, deambulámos pelas praias de Landana. E numas férias, com mais dois amigos, percorremos, num carro alugado,  todo o litoral de Angola, de Luanda a Porto Alexandre.
 
Trabalhámos juntos no  Banco Lisboa & Açores , onde nos divertíamos com as histórias do velho Macedo que todos os dias ia ao Nicola comer o seu meio bife e já nem precisava pedir para ser servido, do Jaime, o da burra, que assim chamávamos por que tinha uma burra em Colares, e de um outro, o Vitor Manuel, que engraçou com o nome de um colega, e repetia à exaustão: "o mê amigo Lavadinho". E foi lá que conheci  a austera figura de Vitorino Vasconcelos Almada, que chefiava um departamento, e que um dia, para realçar a importância da sua pessoa, nos disse com ar solene: "Hoje fui almoçar com uma mescla de amigos, pessoas com quem vocês não contactam".
 
Fizemos outras viagens maravilhosas e inesquecíveis. Estivemos no terminus da estrada transamericana em Ushuaia, no extremo sul da Patagónia, nas margens do canal de Beagle; comtemplámos, deslumbrados, o espetáculo que é o glaciar  Perito Moreno, no parque dos glaciares, onde chegámos vindos de Calafate. E fomos visitar a Barranca del Cobre,  no México, onde viajámos no famoso comboio "El Chepe" de Los Mochis  para Chihuahua.  Fomos os primeiros portugueses a almoçar em Salta - cidade que fica no noroeste da Argentina -  num famoso restaurante onde o proprietário, Capeto Dias, cozinhou exclusivamente para nós e nos ofereceu do seu melhor vinho.

E poderia incluir neste roteiro outros países e outras emocionantes aventuras: Marrocos, a Dinamarca, a Turquia, a Rússia, etc... não esquecendo as incursões pelo Alentejo e por Trás os Montes. E nessas viagens não posso deixar de recordar a figura, tantas vezes presente, do saudoso Joaquim Pereira e da Orlanda, sua mulher.

Costuma-se dizer que escolhemos os amigos mas não escolhemos os irmãos. Eu não escolhi o Armando como irmão, mas escolhi-o como amigo.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Alcides 4 - As esculturas

Comecei a arte de escultor já depois que me ter reformado. Quando atingi os sessenta e cinco anos, eu não tinha reforma nenhuma, não descontava nada. Os mestres antigamente não pagavam. Quem ia aprender é que tinha de pagar. Eu não paguei, mas aprendi a arte. Queria pagar para a reforma, porque eu pensava já no futuro. Pensava “agora, ainda posso trabalhar, mas quando chegar a velho, só os funcionários do estado é que têm as reformas.”. E eu quis pagar, mas não podia. Porque não trabalhava por conta de ninguém. Trabalhava por minha conta e não tinha direito a pagar. Quando eu soube, já tinha saído uma lei que era a lei dos independentes. Então, fui daqui à Guarda a tratar de me inscrever. Lá falei na Segurança Social, inscrevi-me. Paguei esses dois anos atrasados desde que já tinha saído a lei. E paguei o juro desse dinheiro que devia ter entrado. Com isso consegui uma reforma de trezentos euros por mês, que é o que agora recebo. Na altura até eram vinte e nove contos. Quando ainda eram contos. Ainda era em escudos. E então eram vinte e nove contos. Depois, daí para cá tem vindo a aumentar. Que eu agora recebo trezentos...euros. Agora, já é em euros.

Isto passou-se em noventa e seis, salvo erro. Tinha vontade de trabalhar. Ainda me sentia com força e nunca gostei de estar parado. E então agarrei numa peça aqui, noutra ali...Só foi imaginação, mais nada. E vontade de trabalhar. Tudo o que fazia no serviço, era sempre com paixão e com vontade de trabalhar.

Ocorreu-me a primeira ideia, quando me lembrei dos tempos em que estava solteiro que ia para a fonte, atrás das raparigas. Elas levavam o cântaro à cabeça e a gente ia atrás delas. Houve uma vez que até se partiram os cântaros. Lembrei o tempo de novo. Que a gente, não é como agora, que não entrava com as raparigas aí em qualquer lado, em cafés. Nem cafés havia. E então quando as apanhava é quando iam à fonte, encher o cântaro lá para baixo para o arrabalde. E a gente é que as acompanhava com um bocadinho de conversa. E ao domingo, quando ia à missa. À saída da missa. Não havia liberdades como agora. Que era para vir dar o passeiozinho com as raparigas pela rua de Almeida, para elas depois irem para casa. Só dávamos aquela voltinha. Não havia outra hipótese de andar com elas Ou ir vê-las quando elas iam com os cântaros à cabeça, quando iam à fonte, não é? E ficar a espreitá-las.Não eram só as garotas, as novas. Também iam as velhas. Precisavam de água e não havia água nas torneiras. Almeida só teve água canalizada em 1951. Em 1949, que eu fui à inspeção, estavam as ruas de Almeida abertas, para meter os canos. Mas tudo isto levou o seu tempo...um ano ou dois. E nessa altura, mais ou menos em cinquenta e um, é que Almeida teve água canalizada. Mas não era em todas as casas! Era só em quem a requeria.Porque depois...Há um que não meteu, depois tinha de pagar para lhe abrirem


As mulheres com o cantaro á cabeça Foi a ideia para a primeira peça que eu tenho ali. Desenhei-a, mas de modo diferente do desenho No papel é só uma frente. E na madeira é preciso desenhar quatro faces. É preciso desenhar a frente, as laterais e a retaguarda. Eu sabia trabalhar a madeira com os seus feitios, os revessos, o correr e os truques. E, claro,  alçar as ferramentas, as serras e tudo.  Eu não ia para uma obra sem trabalhar com as ferramentas. .. Mas muito tive que riscar. Imaginei as mulheres.

Cada peça era diferente. Há peças que levavam, por exemplo, um dia ou dois. Outras demorava quinze ou vinte dias. Era conforme a peça, o tamanho, o modelo, o desenho... Há peças... E o tronco com que vou fazê-las. Tenho lá algumas que eu me vi aflito, muito pesadas, para pôr em cima do banco. Porque eu tinha que as trabalhar em cima do banco. E para empinar os paus, com um tronco grande. Tinha de estar por cima do banco e depois podia trabalhar. E por cima do pau ia imaginando, ia cortando. O que havia de cortar, o que havia de fazer... E assim sucessivamente.
 Não importava qual era a madeira ou pensava “Para esta peça...eu quero este tipo de madeira

Era conforme as madeiras que tinha, mas que fossem boas, próprias para esculturas. Porque a madeira de pinho, que era o que nós utilizávamos mais antigamente, eu não utilizava para coisa nenhuma. Só para carpintaria... não presta.era madeira nacional. Era oliveira, o freixo, o negrilho...O salgueiro-branco ou vidoeiro que é uma planta que tem a casca como de prata, e é roxa. E até a folha é medicinal.


Eu pensava em fazer uma mulher, em madeira, que é na madeira que trabalho. Pensava em fazer uma mulher, conforme os trajes que usava. Porque se a senhora for a ver os que lá tenho, umas estão de avental, outras estão de xaile. Até lá as tenho com xailes de seda, com colares de pérolas. Também iam vaidosas à fonte! Não eram só as criadas, não é? Uma ou outra ia muito bem vestida. Lá as tenho ali. Imaginei e trabalhei o xaile, com as flores, o colar de pérolas, e assim sucessivamente. E para cada uma imaginava o feitio que havia de fazer. Outras de avental, com as mãos nos bolsos... Conforme lá estão feitas.

Fiz tudo com prazer. Não fazia trabalho nenhum que não fosse por prazer. Se não tivesse prazer numa ocasião, já me... Chateei-me. Estava a fazer uma. Tive o azar, parti-lhe um bocado. Não queria colar. Não queria peças coladas. Tudo o que lá está é tudo inteiriço. Agarrei no machado, escavaquei-a. Pronto, já não faço mais. Mas passado dez ou quinze minutos, já estava a arranjar outro pau a começar outra. Comecei outra de novo e não a estraguei. Eu lembrava-me de fazer conforme os trajes. As velhas de capa. Usavam umas capinhas, as velhas, com aquelas saias muito largas, que andavam por baixo dos joelhos. Também fiz as minissaias.

Também lá estão duas minissaias. Depois, mais tarde, já havia meninas já com minissaia. Depois, as outras compridas, com aqueles xailes pretos, com uma franja a arrastar.


Conforme me vinha à ideia, assim eu fazia as imagens, as esculturas. Faço qualquer coisa. Tenho é que imaginar primeiro. Antes de começar a trabalhar, tenho de saber o que vou fazer. E depois de saber o que vou fazer, tenho que olhar para uma peça de madeira e ver se dá para fazer aquilo que eu quero.

Fiz peças que não são parecidas com nada. Eram imaginadas. Imaginações que eu tinha e fazia a peça.Eu imaginava o que queria fazer. Então, com a ferramenta cortava onde queria, deixava a madeira mais grossa ou mais fina. Dava-lhe os feitios que queria. Com as ferramentas, faço tudo. É tudo inteiriço. É tudo esculpido na própria madeira. E depois era conforme o... Desenhava. Algumas, desenhava. E outras, no próprio momento que estava a fazer, é que imaginava e desenhava já na própria madeira. Porque a gente depois de saber trabalhar a madeira, tem que saber as voltas que lhe há-de dar, e como há-de cortar, e aonde... Tudo tem conforme o que a gente quer fazer. Aquilo tem um bocado de ciência e de imaginação. E vontade de trabalhar!

Porque eu a arte sabia-a bem. Sabia muito bem trabalhar. Que eu ainda estive uns anos sem trabalhar na madeira. Porque depois pus comércio, de vendas de mobílias e outras coisas. Mas não foi muito tempo, isso. Depois atingi a idade. Fiz a casa. Esta casa onde vivo. Fi-la eu toda, porque também trabalhava nas casas. Eu, o arremate, por exemplo, de uma casa era eu que fazia.
Sr. Alcides: Não, porque eu não sei dar valor a esta peças . As pessoas não sabem dar valor às peças que eu tenho. Tem lá peças de muito valor, que nem eu sei o valor delas.
Porque...vieram aí uns senhores... Não sei se já lhe contei. Aquelas peças grandes... E procuraram saber o valor delas. Eu disse “Não, eu não fiz isto para vender.”. Nem olhei ao tempo. Tanto me dava se estava oito dias, como quinze, como vinte. Começava a peça e tinha que a acabar. Não olhava ao tempo que estava a trabalhar.
Sr. Alcides: Ah, pois. Eu estava a fazer as coisas com gosto.
Sr. Alcides: Sentia alegria em fazer o trabalho. Ainda agora.
Sr. Alcides: Ainda agora. Olhe, pus uma peça no banco que ainda era para a fazer.

domingo, 26 de março de 2017

Alcides 3 - Militar e Bombeiro Voluntário

Aos dezassete anos, fui para bombeiro voluntário. Não havia lá garotos. O meu mestre, que era o Joaquim Valentim, foi fundador dos bombeiros em Almeida.. E tinha um filho que se chamava Manuel Valentim. Ele também trabalhava com o pai. Eu aprendi com os dois. Na oficina, trabalhavam os dois. Este Manuel Valentim propôs-me entrar para bombeiro, porque estava habituado comigo a andar nos telhados, como os gatos. E foi para ser agulheta, que era o caso dele, que andava por cima das paredes como anda um macaco, Como já estava habituado a trabalhar comigo, propôs-me. E fui aceite pela Direção dos Bombeiros. As admissões tinham de ir a reunião. Não é como agora. E cheguei a comandante, que eram só tenentes ou capitães, gente que não percebia nada de bombeiros. Era só o nome, e eles é que comandavam o batalhão. Mas eu acompanhava sempre os bombeiros. Eles estavam habituados comigo e quando iam para nomear outro, um tenente-coronel, que se chamava Matos, nomearam-me a mim. Foi uma surpresa que me fizeram. E eu, depois, aceitei. Estava lá metido. Fui bombeiro por amor à Humanidade. Não era a ganhar dinheiro. Estive lá 31 anos.

E aos vinte e dois anos, casei-me e fui para a tropa. Fui lá passar a lua-de-mel...Comecei a namorar a minha mulher no dia 17 de Abril. Eu tinha dezanove, vinte anos. Se formos fazer as contas, em trinta e nove, mais ou menos. Não, foi em quarenta e nove. Aprendi a vida, trabalhei, fui aumentando, fui ganhando. E aos dezanove anos, já tinha posto carpintaria por minha conta.

Na tropa tive uma especialidade difícil, mas que gostei muito dela, que era da TSF. Trabalhava com o Morse. Éramos noventa e tal a aprender. Ficámos seis apurados. Eu fiquei em primeiro lugar. Não falhei nada. Letra nenhuma. Gostei daquilo. Se eu mandasse - já disse isto muitas vezes-, não havia de haver homem nenhum que não fosse à tropa. Porque eu aprendi muito, muito, muito. Tirei lá o curso de ginástica especial. Quando para lá fui, pouco saltava. Um metro, um metro e pico, ou até menos.  E de lá depois fui para a ginástica especial. Fomos para Coimbra, para o Campo Pequeno, num concurso da Segunda Região Militar e ficámos em primeiro lugar, na ginástica. Fazia coisas que nunca me passou pela cabeça fazer. O meu corpo era borracha. Passados oito dias de andar na ginástica, eu parecia que tinha os ossos todos escangalhados. Tudo me doía. Quase nem podia andar. Passados três ou quatro dias, fazia o que queria do corpo. Vergava-o por todos os lados. E foram quatro meses de ginástica. E aprendi muito.

Ainda guardo o desenho do rádio com que trabalhei, que era o P-21. Era pesado. Era mais ou menos como uma televisão. Os outros pequeninos, de bolso, também usávamos, mas só atingiam onze quilómetros. Era como se fosse um telemóvel, só àquela distância. E aqueles, não. Aqueles já estavam fixos e já se comunicava para Coimbra e para vários lados.

Ora, entrei em Abril e saí em no ano seguinte, em Agosto. Foram dezasseis meses em que não trabalhei a madeira. Nesses meses vinha todas as semanas da Guarda para Almeida de bicicleta

Alcides 2- Aprender uma Arte

Acabada a escola, queriam que eu fosse a guardar ovelhas. Mas acho que o destino já estava marcado, e oitos dias depois de ter feito o exame da terceira classe fui aprender a arte de carpinteiro para a oficina do meu padrinho, o Sr Joaquim Valentim, que ficava à Rua Direita, na rua do Volta Atrás. Almeida era uma terra de muitos artistas, havia sapateiros e alfaiates, alguns com muitos empregados. Mas eu não gostava de ser alfaiate, porque era serviço de mulheres. Ficar ali com a agulha a coser, eu não gostava. E sapateiro também não, apesar de ter um irmão sapateiro. As botas cheiravam mal. Queria uma arte que eu gostasse que era a de carpinteiro e tive a sorte de o meu mestre ser meu padrinho de batismo. Considero mesmo que foi uma grande sorte porque havia muitos a querer aprender. E ele preferiu-me a mim porque era afilhado, apesar de já estar comprometido com outros. Foi Deus que me ajudou

O primeiro dia que entrei para a oficina  ia descalço. Não tinha dinheiro nem para sapatos, nem para comer. Naquele tempo, era preciso pagar para aprender. Eu não paguei porque o meu mestre era o meu padrinho de batismo e preferiu-me a mim por ser afilhado. E essa foi a minha sorte. Lembro-me bem da primeira lição que me deu, no dia em que fui aprender a arte. Foi o seu primeiro ensinamento. O que  ele me disse foi assim, nestes termos: “Olha, ó afilhado, vou-te dizer uma coisa. Tu és muito garoto. Nós entramos em muitas casas. Nunca me deixes em pouco”. Só me disse isto. Eu compreendi logo o que ele queria dizer. Que eu podia lá entrar em toda a parte...Porque a gente entrava em todas as casas de Almeida. Mas não podia tocar em nada. Mesmo sendo pobre, sem sapatos. O que estava lá dentro era tudo sagrado. Era como a sagrada escritura, ali não se pode mexer. Era como o sacrário.

Naquela oficina, durante três anos, aprendi a arte com muito gosto e prazer. E ia aprendendo à minha custa. O meu mestre, que era o meu padrinho de batismo, tinha lá uma cadeira com um pé partido, da parte da frente. Era uma cadeira de palha. E mandou-me fazer um pé. Eu já lá andava aí há três meses, mas só tinha aprendido a aguçar a ferramenta que foi a primeira coisa que ele me ensinou, E então deu-me a cadeira e disse-me:  “Olha, mete um pé a essa cadeira”. Eu lá arranjei um bocado de madeira e fiz o pé, só que saiu-me azar. Tinha tudo prontinho, com todo o trabalhinho feito à minha maneira. Mas fiz o pé igual ao que estava bom. E ele dizia: “Olha, os furos agora não batem certo. Faz outro pé”. Não me ensinou como deveria fazer. Disse-me apenas isto: “Faz outro!”. Tornei a fazer, tornei-me a enganar. Fiz o pé com tanto trabalho,  e tornava-me a ir para o outro lado. Então percebi que tinha de ser eu a resolver o assunto. Comecei a imaginar como é que havia de fazer para os furos não irem para o outro lado. E então, com a peça em bruto, pu-la no sítio e risquei-a antes de a trabalhar. E, a seguir, furei-a. Depois, trabalhei-a e ficou lá bem na cadeira. Foi assim que ele me ensinou. E foi assim que eu aprendi.

O difícil da arte é aprender a trabalhar. Porque depois de se saber trabalhar, nós é que temos de imaginar o serviço. E por vezes, os serviços é que nos ensinam. Que se é feito desta maneira ou daquela, conforme o serviço que estamos a fazer. Conforme o que precisávamos de fazer é que íamos estudar a maneira. É preciso saber um bocado de geometria, de matemática e de desenho. Desenhava muito. Não fazíamos aquilo assim à toa. Não se podia cortar um bocado de madeira sem estar marcada e riscada. E tinha a gente de saber preparar as ferramentas, que foi o primeiro serviço que me ensinaram a fazer…

Ainda me fez outra. Uma vez, debulhou-me este dedo. Ainda lá andava há pouco tempo. Era numa quinta. Andávamos no telhado. Ele andava em cima da trave. Eu ainda não subia lá para cima para as traves. Ainda andava na parede, que era mais seguro. Eu segurava o cabo na parede e eles estavam em cima. Eu ainda era garoto, sentia os pássaros ali atrás de mim. Em vez de estar a olhar para o trabalho que estava a fazer, pus-me a olhar para os pássaros. Ele viu-me distraído. Como quem diz... Em vez de eu estar com atenção ao que estava a fazer, botou cá para baixo para me assustar. O cabo apanha-me o dedo contra a pedra. Debulhou-o, quase deixou o osso à mostra. Sangrava. Diz ele “Olha, eu não era para te fazer esse serviço. Era só para tu não te tornares a distrair.” Nunca mais me distraí. Quando estava com o colega a trabalhar, tinha que estar com atenção ao trabalho. Mas, daquela vez, tive azar que me marcou o dedo todo. Era tudo ensinamentos.

Não paguei para aprender, mas também não ganhava nada. Andei três anos a trabalhar de graça. No dia que fez os três anos, o meu mestre pôs-me a ganhar três escudos por dia. Foi um alarde em Almeida, um garoto com catorze anos a ganhar três escudos! Um homem com uma enxada grande a cavar a terra de manhã, do nascer do sol a pôr, ganhava quatro e quinhentos, quero dizer, quatro escudos e cinquenta centavos. Eu ganhava já quase tanto como um homem pai de filhos. Como muitos. E viviam...Eu comecei a aprender nessa data e passado pouco tempo, um ano e tal, passou-me logo para seis escudos.

Na madeira, eu fazia tudo. Tudo o que tocasse em madeira, éramos nós que fazíamos.Da porta dos carros aos telhados. As casas só tinham as paredes de pedra. Tudo o resto éramos nós que fazíamos: os soalhos, os tetos, as portas, as janelas. Tudo o que era madeiras, era para carpintaria. Portanto, tinha muito que fazer. Eram trabalhos arriscados. Eu andava como os macacos, pendurado nos telhados. Ia com as ferramentas às costas e lá me segurava. Nessa altura fazia as portas, as janelas, fazia a carpintaria. E aos dezanove anos, eu já tinha carpintaria por minha conta. Era senhor absoluto. E então eu fazia o trabalho de carpinteiro que era para me governar. Para comer.


Alcides 1 -Infância


Nasci em Almeida, no dia 3 de Abril de 1929. Foi na Rua do Seixo, numa casa rasteira de telha vã que ficava pegada ao matadouro, em frente ao antigo Quartel de Cavalaria. Comparada com as casas de hoje não era maior que uma divisão pois não teria mais que 20 m2. Vivíamos nessa casa eu, a minha mãe, e mais dois irmãos. A minha mãe não tinha leite e eu fui criado numa teta emprestada por uma vizinha que tinha um filho da minha idade. Com o medo que me trocassem, a minha mãe marcou-me com um sinal. O meu pai que era primeiro sargento, morreu tinha eu sete meses. Ainda me lembro da minha avó paterna que se chamava Maria do Pereiro. Era aguadeira, trazia água para o quartel, quatro cântaros de cada vez. Era casada com o meu avô, Francisco do Pereiro. Naquela casa da Rua do Seixo me criei, e ali ali vivi até aos 8 anos. Depois mudei para outra casita junto à muralha.

Nos primeiros anos, a minha vida foi muito difícil. Mas eu considero que tive uma infância feliz pois vivia em liberdade. Andava descalço, e todos os dias tinha de preocupar-me em saber onde ia pedir um bocado de pão. Para nos criar, a minha mãe mondave, arranjava meias que se rompiam nas calcanheiras e nas biqueiras e vendia ovos. Ia buscá-los, a pé, a Chavelhas e ao Azinhal para os vender em Almeida. A nossa comida pouco variava: batatas, couve, carne nem vê-la.

Às vezes não deixava nada para comer e eu tinha que ir a uma casa qualquer a pedir. E ainda me aconteceu um caso. Um dia o professor estava a dar aulas e eu estava a pensar, ao meio-dia, onde é que havia de ir arranjar uma esmola. E não é que o professor viu-me distraído e disse assim: “Olhe, você está pensando em como ao meio-dia há-de ir pedir um bocado de pão.” E acertou no meu pensamento! Que era mesmo isso que eu estava a pensar. e pensava assim muitas vezes. Além disso, andava descalço e fazia frio. E ao meio-dia ainda tinha  o problema de saber aonde havia de ir comer.

A minha mãe era muito católica, rezava todos os dia o terço. Nesse tempo, nós tínhamos uma relação muito respeitosa com os mais velhos. À hora de deitar eu pedia a bênção à minha mãe: ─ Bote-me a sua bênção minha mãe. E acontecia o mesmo sempre que me cruzava com o meu padrinho: ─ Bote-me a sua bênção meu padrinho. E a resposta que obtinha era sempre a mesma: ─ Deus te abençoe meu filho. Um dia, aos seis anos, fui ao terço, deixei-me dormir e fiquei fechado na igreja. Assustei-me muito, pois imaginava os santos a vir a correr atrás de mim.

Frequentei a escola do professor Abel Pires. Fui para a escola aos sete anos, no dia 7 de Outubro no ano em que fiz sete anos. Fiz os anos em Abril e entrei em Outubro, que era quando abriam as aulas. Fiz a primeira, a segunda e fiz a terceira classe. Com exame! Não foi passagem...Era um exame mais ou menos como o da quarta classe, a mesma matéria, os mesmo os livros. Só que a quarta era mais aperfeiçoada. E então tive que deixar a escola, porque estudar mais já não podia. Não havia posses nem para os ricos. Pois os chamados ricos, não eram assim tão ricos para mandar os filhos a estudar.