domingo, 26 de março de 2017

Alcides 3 - Militar e Bombeiro Voluntário

Aos dezassete anos, fui para bombeiro voluntário. Não havia lá garotos. O meu mestre, que era o Joaquim Valentim, foi fundador dos bombeiros em Almeida.. E tinha um filho que se chamava Manuel Valentim. Ele também trabalhava com o pai. Eu aprendi com os dois. Na oficina, trabalhavam os dois. Este Manuel Valentim propôs-me entrar para bombeiro, porque estava habituado comigo a andar nos telhados, como os gatos. E foi para ser agulheta, que era o caso dele, que andava por cima das paredes como anda um macaco, Como já estava habituado a trabalhar comigo, propôs-me. E fui aceite pela Direção dos Bombeiros. As admissões tinham de ir a reunião. Não é como agora. E cheguei a comandante, que eram só tenentes ou capitães, gente que não percebia nada de bombeiros. Era só o nome, e eles é que comandavam o batalhão. Mas eu acompanhava sempre os bombeiros. Eles estavam habituados comigo e quando iam para nomear outro, um tenente-coronel, que se chamava Matos, nomearam-me a mim. Foi uma surpresa que me fizeram. E eu, depois, aceitei. Estava lá metido. Fui bombeiro por amor à Humanidade. Não era a ganhar dinheiro. Estive lá 31 anos.

E aos vinte e dois anos, casei-me e fui para a tropa. Fui lá passar a lua-de-mel...Comecei a namorar a minha mulher no dia 17 de Abril. Eu tinha dezanove, vinte anos. Se formos fazer as contas, em trinta e nove, mais ou menos. Não, foi em quarenta e nove. Aprendi a vida, trabalhei, fui aumentando, fui ganhando. E aos dezanove anos, já tinha posto carpintaria por minha conta.

Na tropa tive uma especialidade difícil, mas que gostei muito dela, que era da TSF. Trabalhava com o Morse. Éramos noventa e tal a aprender. Ficámos seis apurados. Eu fiquei em primeiro lugar. Não falhei nada. Letra nenhuma. Gostei daquilo. Se eu mandasse - já disse isto muitas vezes-, não havia de haver homem nenhum que não fosse à tropa. Porque eu aprendi muito, muito, muito. Tirei lá o curso de ginástica especial. Quando para lá fui, pouco saltava. Um metro, um metro e pico, ou até menos.  E de lá depois fui para a ginástica especial. Fomos para Coimbra, para o Campo Pequeno, num concurso da Segunda Região Militar e ficámos em primeiro lugar, na ginástica. Fazia coisas que nunca me passou pela cabeça fazer. O meu corpo era borracha. Passados oito dias de andar na ginástica, eu parecia que tinha os ossos todos escangalhados. Tudo me doía. Quase nem podia andar. Passados três ou quatro dias, fazia o que queria do corpo. Vergava-o por todos os lados. E foram quatro meses de ginástica. E aprendi muito.

Ainda guardo o desenho do rádio com que trabalhei, que era o P-21. Era pesado. Era mais ou menos como uma televisão. Os outros pequeninos, de bolso, também usávamos, mas só atingiam onze quilómetros. Era como se fosse um telemóvel, só àquela distância. E aqueles, não. Aqueles já estavam fixos e já se comunicava para Coimbra e para vários lados.

Ora, entrei em Abril e saí em no ano seguinte, em Agosto. Foram dezasseis meses em que não trabalhei a madeira. Nesses meses vinha todas as semanas da Guarda para Almeida de bicicleta

Alcides 2- Aprender uma Arte

Acabada a escola, queriam que eu fosse a guardar ovelhas. Mas acho que o destino já estava marcado, e oitos dias depois de ter feito o exame da terceira classe fui aprender a arte de carpinteiro para a oficina do meu padrinho, o Sr Joaquim Valentim, que ficava à Rua Direita, na rua do Volta Atrás. Almeida era uma terra de muitos artistas, havia sapateiros e alfaiates, alguns com muitos empregados. Mas eu não gostava de ser alfaiate, porque era serviço de mulheres. Ficar ali com a agulha a coser, eu não gostava. E sapateiro também não, apesar de ter um irmão sapateiro. As botas cheiravam mal. Queria uma arte que eu gostasse que era a de carpinteiro e tive a sorte de o meu mestre ser meu padrinho de batismo. Considero mesmo que foi uma grande sorte porque havia muitos a querer aprender. E ele preferiu-me a mim porque era afilhado, apesar de já estar comprometido com outros. Foi Deus que me ajudou

O primeiro dia que entrei para a oficina  ia descalço. Não tinha dinheiro nem para sapatos, nem para comer. Naquele tempo, era preciso pagar para aprender. Eu não paguei porque o meu mestre era o meu padrinho de batismo e preferiu-me a mim por ser afilhado. E essa foi a minha sorte. Lembro-me bem da primeira lição que me deu, no dia em que fui aprender a arte. Foi o seu primeiro ensinamento. O que  ele me disse foi assim, nestes termos: “Olha, ó afilhado, vou-te dizer uma coisa. Tu és muito garoto. Nós entramos em muitas casas. Nunca me deixes em pouco”. Só me disse isto. Eu compreendi logo o que ele queria dizer. Que eu podia lá entrar em toda a parte...Porque a gente entrava em todas as casas de Almeida. Mas não podia tocar em nada. Mesmo sendo pobre, sem sapatos. O que estava lá dentro era tudo sagrado. Era como a sagrada escritura, ali não se pode mexer. Era como o sacrário.

Naquela oficina, durante três anos, aprendi a arte com muito gosto e prazer. E ia aprendendo à minha custa. O meu mestre, que era o meu padrinho de batismo, tinha lá uma cadeira com um pé partido, da parte da frente. Era uma cadeira de palha. E mandou-me fazer um pé. Eu já lá andava aí há três meses, mas só tinha aprendido a aguçar a ferramenta que foi a primeira coisa que ele me ensinou, E então deu-me a cadeira e disse-me:  “Olha, mete um pé a essa cadeira”. Eu lá arranjei um bocado de madeira e fiz o pé, só que saiu-me azar. Tinha tudo prontinho, com todo o trabalhinho feito à minha maneira. Mas fiz o pé igual ao que estava bom. E ele dizia: “Olha, os furos agora não batem certo. Faz outro pé”. Não me ensinou como deveria fazer. Disse-me apenas isto: “Faz outro!”. Tornei a fazer, tornei-me a enganar. Fiz o pé com tanto trabalho,  e tornava-me a ir para o outro lado. Então percebi que tinha de ser eu a resolver o assunto. Comecei a imaginar como é que havia de fazer para os furos não irem para o outro lado. E então, com a peça em bruto, pu-la no sítio e risquei-a antes de a trabalhar. E, a seguir, furei-a. Depois, trabalhei-a e ficou lá bem na cadeira. Foi assim que ele me ensinou. E foi assim que eu aprendi.

O difícil da arte é aprender a trabalhar. Porque depois de se saber trabalhar, nós é que temos de imaginar o serviço. E por vezes, os serviços é que nos ensinam. Que se é feito desta maneira ou daquela, conforme o serviço que estamos a fazer. Conforme o que precisávamos de fazer é que íamos estudar a maneira. É preciso saber um bocado de geometria, de matemática e de desenho. Desenhava muito. Não fazíamos aquilo assim à toa. Não se podia cortar um bocado de madeira sem estar marcada e riscada. E tinha a gente de saber preparar as ferramentas, que foi o primeiro serviço que me ensinaram a fazer…

Ainda me fez outra. Uma vez, debulhou-me este dedo. Ainda lá andava há pouco tempo. Era numa quinta. Andávamos no telhado. Ele andava em cima da trave. Eu ainda não subia lá para cima para as traves. Ainda andava na parede, que era mais seguro. Eu segurava o cabo na parede e eles estavam em cima. Eu ainda era garoto, sentia os pássaros ali atrás de mim. Em vez de estar a olhar para o trabalho que estava a fazer, pus-me a olhar para os pássaros. Ele viu-me distraído. Como quem diz... Em vez de eu estar com atenção ao que estava a fazer, botou cá para baixo para me assustar. O cabo apanha-me o dedo contra a pedra. Debulhou-o, quase deixou o osso à mostra. Sangrava. Diz ele “Olha, eu não era para te fazer esse serviço. Era só para tu não te tornares a distrair.” Nunca mais me distraí. Quando estava com o colega a trabalhar, tinha que estar com atenção ao trabalho. Mas, daquela vez, tive azar que me marcou o dedo todo. Era tudo ensinamentos.

Não paguei para aprender, mas também não ganhava nada. Andei três anos a trabalhar de graça. No dia que fez os três anos, o meu mestre pôs-me a ganhar três escudos por dia. Foi um alarde em Almeida, um garoto com catorze anos a ganhar três escudos! Um homem com uma enxada grande a cavar a terra de manhã, do nascer do sol a pôr, ganhava quatro e quinhentos, quero dizer, quatro escudos e cinquenta centavos. Eu ganhava já quase tanto como um homem pai de filhos. Como muitos. E viviam...Eu comecei a aprender nessa data e passado pouco tempo, um ano e tal, passou-me logo para seis escudos.

Na madeira, eu fazia tudo. Tudo o que tocasse em madeira, éramos nós que fazíamos.Da porta dos carros aos telhados. As casas só tinham as paredes de pedra. Tudo o resto éramos nós que fazíamos: os soalhos, os tetos, as portas, as janelas. Tudo o que era madeiras, era para carpintaria. Portanto, tinha muito que fazer. Eram trabalhos arriscados. Eu andava como os macacos, pendurado nos telhados. Ia com as ferramentas às costas e lá me segurava. Nessa altura fazia as portas, as janelas, fazia a carpintaria. E aos dezanove anos, eu já tinha carpintaria por minha conta. Era senhor absoluto. E então eu fazia o trabalho de carpinteiro que era para me governar. Para comer.


Alcides 1 -Infância


Nasci em Almeida, no dia 3 de Abril de 1929. Foi na Rua do Seixo, numa casa rasteira de telha vã que ficava pegada ao matadouro, em frente ao antigo Quartel de Cavalaria. Comparada com as casas de hoje não era maior que uma divisão pois não teria mais que 20 m2. Vivíamos nessa casa eu, a minha mãe, e mais dois irmãos. A minha mãe não tinha leite e eu fui criado numa teta emprestada por uma vizinha que tinha um filho da minha idade. Com o medo que me trocassem, a minha mãe marcou-me com um sinal. O meu pai que era primeiro sargento, morreu tinha eu sete meses. Ainda me lembro da minha avó paterna que se chamava Maria do Pereiro. Era aguadeira, trazia água para o quartel, quatro cântaros de cada vez. Era casada com o meu avô, Francisco do Pereiro. Naquela casa da Rua do Seixo me criei, e ali ali vivi até aos 8 anos. Depois mudei para outra casita junto à muralha.

Nos primeiros anos, a minha vida foi muito difícil. Mas eu considero que tive uma infância feliz pois vivia em liberdade. Andava descalço, e todos os dias tinha de preocupar-me em saber onde ia pedir um bocado de pão. Para nos criar, a minha mãe mondave, arranjava meias que se rompiam nas calcanheiras e nas biqueiras e vendia ovos. Ia buscá-los, a pé, a Chavelhas e ao Azinhal para os vender em Almeida. A nossa comida pouco variava: batatas, couve, carne nem vê-la.

Às vezes não deixava nada para comer e eu tinha que ir a uma casa qualquer a pedir. E ainda me aconteceu um caso. Um dia o professor estava a dar aulas e eu estava a pensar, ao meio-dia, onde é que havia de ir arranjar uma esmola. E não é que o professor viu-me distraído e disse assim: “Olhe, você está pensando em como ao meio-dia há-de ir pedir um bocado de pão.” E acertou no meu pensamento! Que era mesmo isso que eu estava a pensar. e pensava assim muitas vezes. Além disso, andava descalço e fazia frio. E ao meio-dia ainda tinha  o problema de saber aonde havia de ir comer.

A minha mãe era muito católica, rezava todos os dia o terço. Nesse tempo, nós tínhamos uma relação muito respeitosa com os mais velhos. À hora de deitar eu pedia a bênção à minha mãe: ─ Bote-me a sua bênção minha mãe. E acontecia o mesmo sempre que me cruzava com o meu padrinho: ─ Bote-me a sua bênção meu padrinho. E a resposta que obtinha era sempre a mesma: ─ Deus te abençoe meu filho. Um dia, aos seis anos, fui ao terço, deixei-me dormir e fiquei fechado na igreja. Assustei-me muito, pois imaginava os santos a vir a correr atrás de mim.

Frequentei a escola do professor Abel Pires. Fui para a escola aos sete anos, no dia 7 de Outubro no ano em que fiz sete anos. Fiz os anos em Abril e entrei em Outubro, que era quando abriam as aulas. Fiz a primeira, a segunda e fiz a terceira classe. Com exame! Não foi passagem...Era um exame mais ou menos como o da quarta classe, a mesma matéria, os mesmo os livros. Só que a quarta era mais aperfeiçoada. E então tive que deixar a escola, porque estudar mais já não podia. Não havia posses nem para os ricos. Pois os chamados ricos, não eram assim tão ricos para mandar os filhos a estudar.