quinta-feira, 22 de abril de 2010

Recordações (1)

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José Queirós, em 1983, começou a escrever as suas memórias. A Patricia oferecera-lhe um caderno onde ele começou a tomar notas, de uma forma simples e até algo desorganizada. Já depois da sua morte, vim eu a encontrar, entre os seus papéis, um maço de folhas, onde ele tinha organizado essas notas de uma forma mais finalizada, embora ainda com lacunas. São esses escritos que hoje se começam a publicar no blogue.


Guarda, abril 1986

Pediram-me para escrever alguma coisa sobre o passado, contar a história da minha vida. E foi para isso que a minha neta Patrícia me deu este caderno de folhas brancas. E eu fixo o olhar nestas folhas que me pedem angustiadamente para que nelas escreva qualquer coisa.

Mas escrever é sempre difícil para quem não sabe. Porque escrever é falar para nós, mas é também falar para os outros. Já tantas vezes aqui cheguei com o lápis afiado, e as palavras ficam presas nele, não querem sair, as ideias ficam coladas umas às outras, e, outras vezes, parece que querem sair todas ao mesmo tempo.

Da névoa do tempo começam a surgir vagamente algumas formas. Nas recordações deste tempo que confronto com os dias de hoje, vejo como tudo era o diferente. Aquele mundo da minha infância era o mundo velho: era diferente a maneira de comer e a maneira de morar nas casas, vivíamos com muito poucas comodidades.

Recuo aos tempos da minha meninice e vejo-me, aí pelos meus 6 ou 7 anos, num palheiro com os meus irmãos e a minha mãe. Quando se entrava, na parede, em frente do lado esquerdo, acendia-se o lume, e do lado direito estava uma cama com uma colcha vermelha de fabrico artesanal. Vivíamos nós neste palheiro porque a nossa casa, que ficava mesmo ao lado, estava arrendada para servir de posto da Guarda Fiscal. A renda era de nove mil reis, dinheiro que nos ajudava a viver. Ainda me lembro de ver os oficiais da Guarda que vinham a rondar os soldados, montados nos seus cavalos.

Mas os nove mil reis eram um gasto que a Guarda não queria, ou não podia, suportar; ou por que havia inveja daquele dinheiro, e logo se construiu uma casa, muito à pressa, para servir de posto da Guarda Fiscal. E lá voltámos nós à nossa casa. Por essa altura o meu pai, Francisco, estava emigrado em Buenos Aires na Argentina, onde já tinha ido pela segunda vez. Nós éramos três irmãos: o mais velho, o António, a Maria Augusta e eu.

A nossa mãe, recordo-me que trabalhou muito para nos criar; tinha que trabalhar para os outros, para que os outros, em troca, lhe lavrassem as terras. Sachar, mondar, semear tudo isso era com ela. Recordo-me que uma vez me levou para o Malavado, e nos pontões do rio Seco caí para a água, e a minha mãe tirou-me a fatiota e embrulhou-me com o avental. Algumas vezes quando ia trabalhar para o campo, deixava-me com a avó Margarida que ainda conheci, alta e magra.
(Contínua)

José Queirós

2 comentários:

Jorge Carvalheira disse...

A importância destas "descobertas", destes relatos, destas lembranças, destas vidas, destes mundos... é muito maior do que se pode imaginar.
Digo mesmo que delas depende o futuro, pois que sem elas não há futuro nenhum.
Como muito bem se pode ver, olhando à nossa volta.

Anónimo disse...

Estás orgulhoso e tens razão às carradas para isso. E eu retiro daí também um pouco de orgulho por estar no meio de vós e ter integrado o leque dos que disseram sobre a tua mãe. Pena foi que, nesse meu dizer, tivesses cortado metade do texto por não se compaginar com a tua regra anquilosadora da extensão limitada a duas páginas. Não porque pretendesse mais espaço para mim, nada disso; mas porque tal corte – e a havê-lo só podia ser ali, bem entendido – truncou vertentes mestras da personalidade da tua mãe, as quais entendi deverem ser realçadas: a sua visceral intransigência com a malvadez (a expulsão de sua casa dos abjectos malfeitores) e a humildade de saber reconhecer se acaso cometera o erro de julgar sem ponderação (voltar a receber com comoção e o mesmo amor de antes).
Tudo o que agora li, ou reli, está num alto patamar de valor, está fortemente impregnado de cultura sadia; direi mesmo que faz jus à estatura e personalidade da tua mãe e do teu pai. Mas particularizo a impressão forte, muito forte, que me deixaram os depoimentos dos netos, depoimentos que classifico como admiráveis.


Póvoa de Santo Adrião, 30 de Abril de 2010.

Luís Veiga
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