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José Queirós continua a evocar a sua infância, em S. Pedro do Rio Sêco
Naquele tempo não havia dinheiro para comprar nada, nem peixe, carnes ou frutas, comia-se o que produziam os campos. Se o ano vinha bom havia que economizar, mas se o ano era mau alguns perdiam a vergonha e mendigavam, e outros até roubavam. Muitos que eu conheço lá se criaram deste modo, e agora suspeito que já não se lembram. Porque agora tudo é diferente.
A ementa diária era, quase sempre, um caldo feito de batatas, cebola e couve, acompanhado de pão centeio muito escuro. Recordo-me de comer este caldo numa tigela, feita de um barro espanhol muito avermelhado, a que nós chamávamos o "caçoilo".
Algumas vezes fritava-se um pouco de toucinho de porco a que chamávamos chicharros. Esmagávamos as batatas cozidas na banha derretida do toucinho, e isso já era considerado um grande petisco. No verão, com umas caixas em cima de um burro, vinha, de vez em quando, um comerciante de Vilar Formoso, vender sardinhas. A nossa mãe comprava duas sardinhas as quais, a dividir por quatro, meia sardinha para cada um, era o que nos calhava nesse dia. Um ovo estrelado comia-se raramente; na primavera, quando as galinhas punham mais, ia-se vender os ovos no mercado do dia 8, em Almeida. Frutas havia no verão com fartura: figos, abrunhos, maçãs e peras. Havia uns abrunhos selvagens a que chamávamos “cagoiços” por provocarem frequentes diarreias. Bananas, vi-as eu pela primeira vez, já adulto, em Lisboa, e laranjas eram uma raridade.
Na mercearia da Senhora Laura, no Largo do meio-do-povo, comprava-se algum açúcar, o café de cevada e pouco mais.
E não desprezávamos os frutos e as ervas silvestres : as bolotas de azinheira, assadas, eram bem boas ( que a ti Luzia trazia de Espanha à espera de receber, em troca, um punhado de batatas), comiam-se as azedas que cresciam nos prados, e as meruges nos regatos. Havia as amoras das silveiras das quais guardo uma indelével recordação: foi uma vez que eu subi num muro de pedras soltas para as colher, e, qual a minha surpresa, o muro caiu, e eu sobre ele. As pedras marcaram-me para sempre o rosto com uma cicatriz. Nunca mais me esqueci do local, foi na Caleja do Ribeiro, e às vezes ainda me revejo a repor as pedras, e reparo numa delas que era muito arredondada, e julgo que foi essa a que me marcou.
(contínua)
segunda-feira, 26 de abril de 2010
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