O primeiro dia que entrei para a oficina ia descalço. Não tinha dinheiro nem para sapatos, nem para comer. Naquele tempo, era preciso pagar para aprender. Eu não paguei porque o meu mestre era o meu padrinho de batismo e preferiu-me a mim por ser afilhado. E essa foi a minha sorte. Lembro-me bem da primeira lição que me deu, no dia em que fui aprender a arte. Foi o seu primeiro ensinamento. O que ele me disse foi assim, nestes termos: “Olha, ó afilhado, vou-te dizer uma coisa. Tu és muito garoto. Nós entramos em muitas casas. Nunca me deixes em pouco”. Só me disse isto. Eu compreendi logo o que ele queria dizer. Que eu podia lá entrar em toda a parte...Porque a gente entrava em todas as casas de Almeida. Mas não podia tocar em nada. Mesmo sendo pobre, sem sapatos. O que estava lá dentro era tudo sagrado. Era como a sagrada escritura, ali não se pode mexer. Era como o sacrário.
Naquela oficina, durante três anos, aprendi a arte com muito gosto e prazer. E ia aprendendo à minha custa. O meu mestre, que era o meu padrinho de batismo, tinha lá uma cadeira com um pé partido, da parte da frente. Era uma cadeira de palha. E mandou-me fazer um pé. Eu já lá andava aí há três meses, mas só tinha aprendido a aguçar a ferramenta que foi a primeira coisa que ele me ensinou, E então deu-me a cadeira e disse-me: “Olha, mete um pé a essa cadeira”. Eu lá arranjei um bocado de madeira e fiz o pé, só que saiu-me azar. Tinha tudo prontinho, com todo o trabalhinho feito à minha maneira. Mas fiz o pé igual ao que estava bom. E ele dizia: “Olha, os furos agora não batem certo. Faz outro pé”. Não me ensinou como deveria fazer. Disse-me apenas isto: “Faz outro!”. Tornei a fazer, tornei-me a enganar. Fiz o pé com tanto trabalho, e tornava-me a ir para o outro lado. Então percebi que tinha de ser eu a resolver o assunto. Comecei a imaginar como é que havia de fazer para os furos não irem para o outro lado. E então, com a peça em bruto, pu-la no sítio e risquei-a antes de a trabalhar. E, a seguir, furei-a. Depois, trabalhei-a e ficou lá bem na cadeira. Foi assim que ele me ensinou. E foi assim que eu aprendi.
O difícil da arte é aprender a trabalhar. Porque depois de se saber trabalhar, nós é que temos de imaginar o serviço. E por vezes, os serviços é que nos ensinam. Que se é feito desta maneira ou daquela, conforme o serviço que estamos a fazer. Conforme o que precisávamos de fazer é que íamos estudar a maneira. É preciso saber um bocado de geometria, de matemática e de desenho. Desenhava muito. Não fazíamos aquilo assim à toa. Não se podia cortar um bocado de madeira sem estar marcada e riscada. E tinha a gente de saber preparar as ferramentas, que foi o primeiro serviço que me ensinaram a fazer…
Ainda me fez outra. Uma vez, debulhou-me este dedo. Ainda lá andava há pouco tempo. Era numa quinta. Andávamos no telhado. Ele andava em cima da trave. Eu ainda não subia lá para cima para as traves. Ainda andava na parede, que era mais seguro. Eu segurava o cabo na parede e eles estavam em cima. Eu ainda era garoto, sentia os pássaros ali atrás de mim. Em vez de estar a olhar para o trabalho que estava a fazer, pus-me a olhar para os pássaros. Ele viu-me distraído. Como quem diz... Em vez de eu estar com atenção ao que estava a fazer, botou cá para baixo para me assustar. O cabo apanha-me o dedo contra a pedra. Debulhou-o, quase deixou o osso à mostra. Sangrava. Diz ele “Olha, eu não era para te fazer esse serviço. Era só para tu não te tornares a distrair.” Nunca mais me distraí. Quando estava com o colega a trabalhar, tinha que estar com atenção ao trabalho. Mas, daquela vez, tive azar que me marcou o dedo todo. Era tudo ensinamentos.
Na madeira, eu fazia tudo. Tudo o que tocasse em madeira, éramos nós que fazíamos.Da porta dos carros aos telhados. As casas só tinham as paredes de pedra. Tudo o resto éramos nós que fazíamos: os soalhos, os tetos, as portas, as janelas. Tudo o que era madeiras, era para carpintaria. Portanto, tinha muito que fazer. Eram trabalhos arriscados. Eu andava como os macacos, pendurado nos telhados. Ia com as ferramentas às costas e lá me segurava. Nessa altura fazia as portas, as janelas, fazia a carpintaria. E aos dezanove anos, eu já tinha carpintaria por minha conta. Era senhor absoluto. E então eu fazia o trabalho de carpinteiro que era para me governar. Para comer.
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