domingo, 26 de março de 2017

Alcides 2- Aprender uma Arte

Acabada a escola, queriam que eu fosse a guardar ovelhas. Mas acho que o destino já estava marcado, e oitos dias depois de ter feito o exame da terceira classe fui aprender a arte de carpinteiro para a oficina do meu padrinho, o Sr Joaquim Valentim, que ficava à Rua Direita, na rua do Volta Atrás. Almeida era uma terra de muitos artistas, havia sapateiros e alfaiates, alguns com muitos empregados. Mas eu não gostava de ser alfaiate, porque era serviço de mulheres. Ficar ali com a agulha a coser, eu não gostava. E sapateiro também não, apesar de ter um irmão sapateiro. As botas cheiravam mal. Queria uma arte que eu gostasse que era a de carpinteiro e tive a sorte de o meu mestre ser meu padrinho de batismo. Considero mesmo que foi uma grande sorte porque havia muitos a querer aprender. E ele preferiu-me a mim porque era afilhado, apesar de já estar comprometido com outros. Foi Deus que me ajudou

O primeiro dia que entrei para a oficina  ia descalço. Não tinha dinheiro nem para sapatos, nem para comer. Naquele tempo, era preciso pagar para aprender. Eu não paguei porque o meu mestre era o meu padrinho de batismo e preferiu-me a mim por ser afilhado. E essa foi a minha sorte. Lembro-me bem da primeira lição que me deu, no dia em que fui aprender a arte. Foi o seu primeiro ensinamento. O que  ele me disse foi assim, nestes termos: “Olha, ó afilhado, vou-te dizer uma coisa. Tu és muito garoto. Nós entramos em muitas casas. Nunca me deixes em pouco”. Só me disse isto. Eu compreendi logo o que ele queria dizer. Que eu podia lá entrar em toda a parte...Porque a gente entrava em todas as casas de Almeida. Mas não podia tocar em nada. Mesmo sendo pobre, sem sapatos. O que estava lá dentro era tudo sagrado. Era como a sagrada escritura, ali não se pode mexer. Era como o sacrário.

Naquela oficina, durante três anos, aprendi a arte com muito gosto e prazer. E ia aprendendo à minha custa. O meu mestre, que era o meu padrinho de batismo, tinha lá uma cadeira com um pé partido, da parte da frente. Era uma cadeira de palha. E mandou-me fazer um pé. Eu já lá andava aí há três meses, mas só tinha aprendido a aguçar a ferramenta que foi a primeira coisa que ele me ensinou, E então deu-me a cadeira e disse-me:  “Olha, mete um pé a essa cadeira”. Eu lá arranjei um bocado de madeira e fiz o pé, só que saiu-me azar. Tinha tudo prontinho, com todo o trabalhinho feito à minha maneira. Mas fiz o pé igual ao que estava bom. E ele dizia: “Olha, os furos agora não batem certo. Faz outro pé”. Não me ensinou como deveria fazer. Disse-me apenas isto: “Faz outro!”. Tornei a fazer, tornei-me a enganar. Fiz o pé com tanto trabalho,  e tornava-me a ir para o outro lado. Então percebi que tinha de ser eu a resolver o assunto. Comecei a imaginar como é que havia de fazer para os furos não irem para o outro lado. E então, com a peça em bruto, pu-la no sítio e risquei-a antes de a trabalhar. E, a seguir, furei-a. Depois, trabalhei-a e ficou lá bem na cadeira. Foi assim que ele me ensinou. E foi assim que eu aprendi.

O difícil da arte é aprender a trabalhar. Porque depois de se saber trabalhar, nós é que temos de imaginar o serviço. E por vezes, os serviços é que nos ensinam. Que se é feito desta maneira ou daquela, conforme o serviço que estamos a fazer. Conforme o que precisávamos de fazer é que íamos estudar a maneira. É preciso saber um bocado de geometria, de matemática e de desenho. Desenhava muito. Não fazíamos aquilo assim à toa. Não se podia cortar um bocado de madeira sem estar marcada e riscada. E tinha a gente de saber preparar as ferramentas, que foi o primeiro serviço que me ensinaram a fazer…

Ainda me fez outra. Uma vez, debulhou-me este dedo. Ainda lá andava há pouco tempo. Era numa quinta. Andávamos no telhado. Ele andava em cima da trave. Eu ainda não subia lá para cima para as traves. Ainda andava na parede, que era mais seguro. Eu segurava o cabo na parede e eles estavam em cima. Eu ainda era garoto, sentia os pássaros ali atrás de mim. Em vez de estar a olhar para o trabalho que estava a fazer, pus-me a olhar para os pássaros. Ele viu-me distraído. Como quem diz... Em vez de eu estar com atenção ao que estava a fazer, botou cá para baixo para me assustar. O cabo apanha-me o dedo contra a pedra. Debulhou-o, quase deixou o osso à mostra. Sangrava. Diz ele “Olha, eu não era para te fazer esse serviço. Era só para tu não te tornares a distrair.” Nunca mais me distraí. Quando estava com o colega a trabalhar, tinha que estar com atenção ao trabalho. Mas, daquela vez, tive azar que me marcou o dedo todo. Era tudo ensinamentos.

Não paguei para aprender, mas também não ganhava nada. Andei três anos a trabalhar de graça. No dia que fez os três anos, o meu mestre pôs-me a ganhar três escudos por dia. Foi um alarde em Almeida, um garoto com catorze anos a ganhar três escudos! Um homem com uma enxada grande a cavar a terra de manhã, do nascer do sol a pôr, ganhava quatro e quinhentos, quero dizer, quatro escudos e cinquenta centavos. Eu ganhava já quase tanto como um homem pai de filhos. Como muitos. E viviam...Eu comecei a aprender nessa data e passado pouco tempo, um ano e tal, passou-me logo para seis escudos.

Na madeira, eu fazia tudo. Tudo o que tocasse em madeira, éramos nós que fazíamos.Da porta dos carros aos telhados. As casas só tinham as paredes de pedra. Tudo o resto éramos nós que fazíamos: os soalhos, os tetos, as portas, as janelas. Tudo o que era madeiras, era para carpintaria. Portanto, tinha muito que fazer. Eram trabalhos arriscados. Eu andava como os macacos, pendurado nos telhados. Ia com as ferramentas às costas e lá me segurava. Nessa altura fazia as portas, as janelas, fazia a carpintaria. E aos dezanove anos, eu já tinha carpintaria por minha conta. Era senhor absoluto. E então eu fazia o trabalho de carpinteiro que era para me governar. Para comer.


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