quarta-feira, 30 de junho de 2010

Recordações (11)

Serões na província

Quando somos novos sentimos uma grande ansiedade, e um enorme desejo de ser adulto para nos tornarmos iguais aos homens e mulheres que nos rodeiam. E, duma forma natural, sentimos que somos incompletos se não encontramos a mulher que nos complete.

Na minha juventude não havia muitas liberdades de relacionamento com raparigas, mas nós não ficávamos indiferentes, e tudo fazíamos para ficar perto delas, sempre que havia oportunidade para isso. Para os jovens o tempo mais alegre era o tempo que passávamos nos bailes, animados pelos tocadores da concertina ou da guitarra. Claro que, na forma de aboradar as raparigas, não se permitiam avanços, tudo tinha de ser feitos com as normas que respeitassem as tradições dos mais velhos.

Havia o baile mandado,onde todos participavam, e um dava as ordens, "passa por baixo", "passa por cima", "todos ao centro", "troca de pares", "esta não é minha", tudo com muito ritmo e muita alegria. E havia as danças com os pares agarrados, e nós íamos convidar as raparigas, que muitas vezes estavam com as mães, mas nem sempre elas aceitavam dançar connosco.

E havia os tais “serões” em que nas longas noites de inverno nós íamos para um palheiro, e lá nos aconchegávamos todas na palha. Estávamos deitados à luz de uma candeia a petróleo, cujo consumo era dividido por todos, porque todos o frequentávamos. Havia rapazes e raparigas, contavam-se histórias, cantava-se e tocava-se guitarra. Mas tudo tinha de ser feito sob o olhar atento de algumas mulheres mais velhas que estavam ali como que a guardar as mais novas, e evitar que algum rapaz tivesse alguma atitude mais atrevida.

As meninas trabalhavam a fazer meia, na renda e outras a fiar os linhos. Os rapazes, deitados na palha a fingir que dormiam, às vezes iam-se encostando às raparigas, às vezes, roçando as mãos pelas mãos delas, elas fingiam que não percebiam, mas, se “calhavam” com aquele rapaz, davam sinais de corresponder. E trocavam-se olhares furtivos, que as mulheres mais velhas se apercebiam, mas nada diziam, porque aquilo era a lei da vida.

E era ali que muitas vezes se “fabricavam” os casamentos, mas eu confesso não foi o meu caso. Apesar de todas as dificuldades que tive de enfrentar, e já aqui relatei algumas, eu tenho boas recordações do tempo da juventude, que era uma vida bonita e alegre.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Recordações (10)

Tudo o vento levou

Já contei, atrás, os acontecimentos relacionados com a ida falhada do meu irmão António para o Brasil, e de como isso mudou a vida da nossa família, na casa de meus pais. Lembro-me bem, aquilo foi como se um tornado tivesse passado, como se o ventou tudo tivesse levado. Como se pode concluir, a minha vida, nos meus princípios, vividos em casa dos meus pais, não foi fácil nem risonha. Mas foi também uma lição que eu aprendi para a vida, esta de ficar a saber de que não podemos tomar nada como certo nem definitivo, de que a desgraça pode chegar a qualquer momento, sem avisar e quando menos se espera.

Éramos três irmãos, e fui eu o primeiro que casei. Comecei, após o casamento, uma vida nova com poucos recursos, e sem nenhuns auxílios. Recordo-me da grande luta que tive de travar para vencer, para não cair na lama, e para conseguir o pão necessário para cada dia . Tive de aprender de tudo um pouco, agricultura, barbeiro, sapateiro, pedreiro, carpinteiro, tudo trabalhos sem horário de trabalho e sem descanso semanal. Férias nem pensar nisso, e, mesmo assim, conseguimos uma situação económica equilibrada.

Uma das coisas que eu fazia, nesses primeiros anos, era matar, de vez em quando, uma rês, um cabrito, um borrego ou uma ovelha para vender a carne. Com isso fazia algum dinheiro que dava para pagar o custo do animal, e sempre se aproveitavam aquelas partes menos vendáveis da peça, que nós comíamos em casa. Eu gostava de esfolar, tirar as peles, separar as partes, e usava sempre uma faca boa e muito bem afiada numa pedra de esmeril. Certa vez fui comprar um borrego ao mercado de Figueira, e tive de o trazer até S. Pedro, pela arreata, coisa aí para uns 20 Kms de distância. Não sei quem se cansou mais, se eu ou o animal, mas quando chegamos a S. Pedro ele pesaria uns quilos a menos, e, assim, lá se foi parte do lucro.

Enfim, tinha assumido a grande responsabilidade de ser chefe de família que custa mais que ser solteirão. E não podia dar parte de fraco!. Dentro em pouco tempo 1 filho, isso repetiu-se mais vezes até ao número de quatro filhos…

terça-feira, 22 de junho de 2010

Recordações (9)

Tempos da Guerra

José Queirós, conta-nos histórias da sua vida, e fala de tempos de vacas magras


Nos anos da década de 30, viveram-se em S. Pedro tempos difíceis, e que foram agravados pela Guerra Civil de Espanha. Parece-me que a miséria ainda se tornou mais miserável, nesses anos. Nós sabíamos que se defrontavam duas ideologias distintas, e éramos obrigados a tomar posição, havia os falangistas e os "rojos", ou vermelhos. O Bernardo Limão, nosso vizinho, estava casado com a Concha, uma espanhola, e viviam em Espanha. Um dia voltaram para S. Pedro e trouxeram com eles a experiência dos dias de Madrid e das lutas dos sindicatos. E nós ouvíamos, embasbacados, as histórias que nos contavam, e logo acreditámos que aquele era o lado certo.

A maioria do povo da aldeia seguia a orientação religiosa do padre Raimundo, era favorável aos falangistas. No nosso bairro, por influência do Bernardo Limão, uns quantos de nós nutríamos uma maior simpatia pelos vermelhos. Tínhamos uma grande fé de que o mundo tinha de mudar, que tinha de haver mais igualdade, mais solidariedade, e que as crenças antigas tinham de dar lugar a uma nova ideologia. Em certos dias vinha um indivíduo de Nave de Haver, o Nabais, que nos trazia um jornal clandestino, e que nos falava do "homem novo", e de países onde havia terra para todos, onde havia pão e paz.

Mas, na aldeia, vivia-se um clima de medo e desconfiança; nós éramos apontados a dedo, e, à boca pequena, diziam que nós éramos os vermelhos. As notícias que chegavam do resultado da refrega eram vividas com a exaltação das vitórias, ou com o agrume das derrotas. O padre Raimundo, muito confiante do desfecho da guerra, ia, de binóculos, para o alto de Carcidade para ver os bombardeamentos com que os falangistas, dizia-se, arrasavam a cidade de Madrid. E nós víamos passar grandes filas de camionetas que se dirigiam, pela estrada velha entre Fuentes e Alameda, para Ciudad Rodrigo, e transportavam o apoio que Portugal enviava para os falangistas.

Depois, um dia, chegou a notícia de que a guerra tinha acabado, e nós percebemos que o tal mundo novo ainda vinha longe. Mas logo chegaram novas notícias que diziam que a Inglaterra a França e a Alemanha já começavam outra guerra.

E na Casa da Varanda, um após outro, nasciam os filhos, e aumentavam as bocas que era preciso alimentar. E os meios escasseavam.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Recordaçoes (8)

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Pai Relaxado

Na nossa casa, quem tinha que aguentar o barco era eu, o irmão António e a nossa mãe. O nosso pai Francisco, depois de duas viagens à Argentina regressou mais pobre do que tinha ido. Da última vez que regressou, vinha tão roto que esperou que anoitecesse para entrar na povoação, tal era a vergonha que sentia se o vissem com o aspecto andrajoso que trazia. Nos anos seguintes, Francisco passava o tempo dedicado à missão de beber e fumar, e mais nada. Até que fabricou uma cirrose cujas consequências lhe causaram a morte.

Em vida foi sempre chefe de família, sem dúvida, mas era só para vender os valores móveis e para gastar o dinheiro mal gasto. Vivíamos uma vida sempre em guerras. Francisco era um homem de feitio difícil. Eu creio que ele era um desadaptado. Deambulava pelo povo com um casaco muito coçado, azul, de surrobeco, as botas sempre com os atacadores desapertados. Conversava, filosofava e dava-se bem com toda a gente. Mas, em casa, infernizava a vida da nossa mãe, chegava a bater-lhe. E estava sempre a implicar com o António. Um dia atirou-lhe com um caçoilo e feriu-o na testa. A nossa mãe tudo aguentava. O filho mais novo, o Luís, que fazia uma grande diferença dos outros irmãos era o seu preferido, e tinha para com ele atenções especiais. Até chegou a comprar-lhe uma guitarra.

O António, talvez por ser o mais velho, foi o mais sacrificado. Quis emigrar para o Brasil mas as coisas correram mal. Quatro meses depois de partir regressou a casa, doente e derrotado. Não passou de Santos onde uma doença pulmonar o atingiu, e o obrigou a retornar. Para a casa agrícola, este insucesso, foi um rombo desastroso. Aquela ida abortada custou 9 mil escudos, e para a suportar tivemos de vender três propriedades boas perto do povo, e as vacas de trabalho. E até vendemos a porca que tínhamos cevado para a matança, e que pesava 140 quilos.

Quando casei, a relação do meu pai comigo mudou bastante: quando ia a minha casa era bem recebido e obsequiado pela Aida, e o entendimento começou a ser outro.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Recordações (7)


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José Queirós continua a escrever as sua memórias (capitulo 7)...

Mocidade, que saudade...



Na minha infância gostava muito de ler livros, revistas e jornais. E já jovem adulto, apesar de todos os revezes na minha vida e das dificuldades que tinha de passar, eu cheguei a assinar “O Primeiro de Janeiro”. Recebia-o todos os dias pelo correio e muitas vezes tinha de escondê-lo das outras pessoas da aldeia, que achavam isso muito estranho, e que criticavam as pessoas que liam e a quem chamavam, com desprezo de "doutores". Havia como que inconscientemente uma atitude que repudiava a inovação, a mudança, o progresso. Tudo o que se desviasse do ritmo da vida, tudo o que viesse alterar aqueles costumes antigos, era criticado, às vezes de forma mordaz, ou acintosa. E que nos magoava muito, pois nos levava a excluir-nos e a sentirmos-nos um pouco como “marginais”.

Mas isso não significa que não houvesse coisas boas. Hábitos e práticas que se perderam e que ainda hoje recordo com saudade. Os jogos da adolescência que eram uma mostra de força e virilidade como, por exemplo, o jogo do ferro. E havia o jogo do “Bete” em que um jogador lançava uma bola de pau para ser “batida”, com um pau ou bastão, por outro jogador (que estava dentro de um circulo ou “ring”) . Este jogador, enquanto a bola pairava no ar, corria pelas balizas dispotas, em duas fileiras, à volta do campo. Os adversários procuravam apanhar a bola ainda no ar (às vezes usando um chapéu ou uma gorra basca), e devolviam-na à base. Logo que a bola “riscasse” o “ring”, o corredor tinha de se imobilizar numa baliza. Era um jogo de equipas, duro e tinha alguns riscos. Por ter sido atingido com uma bola, morreu anos mais tarde, na sequência disso, o Carlos, um filho da Ti Miquelina Forneira.

Gritar Ó barro…ó barro… era a forma de chamamento lançado da “Lancha do Forte” para se juntar a mocidade sempre que era necessário para resolver problemas, ou para beber a pinga que se fazia pagar aos rapazes que eram de outra freguesia, e pretendiam casar na nossa. A paga, nestes casos, era mais ou menos de cem escudos. Naquele tempo era bastante, chegava para tudo beber à vontadinha, e comer pão e salada de bacalhau até fartar e sobejar.

Também se gritava "Ó barro!" quando os rapazes atingiam 15 anos (mais ou menos), e tinham de "pagar o vinho". Era, nessa altura, que se dava a transição para homem. Que muitos de nós não chegámos a ter a certeza de o ser...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Recordações (6)


José Queirós fala dos traumas da sua adolescência


Uma bicicleta para dois

Mas nem tudo foram rosas, e eu sofri muitos traumas de infância, muitas angústias que eu interiorizava só para mim e que não contava para os outros. Lembro-me, por exemplo, que quando era bastante criança, o meu crescimento para pessoa adulta era muito lento, muita gente já me dizia que eu não passava de um anão. Afinal cresci, e, hoje, julgo-me um homem bastante normal.

Mas quando era novo, e durante muitos anos, eu vivi com medo obsessivo de morrer tuberculoso. Era algo que era superior a mim, e que me provocava uma grande angústia. A tuberculose era naquele tempo a doença da moda, que se considerava incurável, e muitos foram os que partiram para sempre, alguns que eu conheci e deixaram saudades.

Os que ficámos foi para viver uma vida pouco vivida, às vezes experimentando o aguilhão da fome. Não raras vezes as nossas mães chegavam a esperar que a galinha pusesse o ovo para matar a fome aos filhos. Mas mesmo assim lá nos criámos, crescemos e, hoje, somos pessoas normais. S. Pedro do Rio Seco era uma aldeia com muita vitalidade, que naquele tempo era muito habitada, havia mais de seiscentas pessoas. Alguns que emigravam era para a Argentina e Brasil, e mais tarde para África e, por último, para a Europa. Muito se transformaram as coisas nesta geração!

Não havia transportes como hoje há. Nós tínhamos uma bicicleta lá em casa, e recordo-me que aos sábados, já aprendido o ofício, ia eu fazer barbas a uma terra já do concelho do Sabugal chamada Aldeia da Ponte. Acompanhava-me o meu irmão Luís, dez anos mais novo do que eu. Como só tínhamos uma bicicleta para os dois, um de nós usava-a primeiro, e passado um ou dois quilómetros, deixava-a na berma, para ser utilizada pelo outro, que vinha atrás caminhando a pé. Este, por sua vez, fazia o seu percurso, ultrapassava o andante, e voltava a deixar a bicicleta, mais à frente, na berma, para o outro. E íamos assim, alternando, até chegar ao destino, talvez uns 20 quilómetros de distância.

Os transportes motorizados começaram a aparecer mais ou menos pelo ano de 1930, eram sobretudo automóveis de aluguer e camionetas. Antes dessa data os transportes faziam-se em carros puxados por machos e cavalos, e outras deslocações era a pé, às vezes fazíamos, mais ou menos, 50 quilómetros por dia. Mas eu sei como isso é árduo, custa bastante, e os pés chegam a inchar ao ponto de não caberem nos sapatos!

(contínua)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Recordações (5)

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Trabalhando para ganhar a vida

Mal deixei a escola, logo iniciei uma vida nova. Comecei a sentir a grande responsabilidade de ter de ganhar dinheiro para me vestir e calçar, porque os meus pais não o tinham para mo dar. Comecei então a trabalhar para outros, e a ganhar "o jornal" ou "jeira" que correspondia a um dia de trabalho, e que ia do nascer do sol até ao pôr-do-sol. E o que se ganhava era, mais ou menos, dez escudos por dia.

Havia quem conseguisse dinheiro de outra maneira, tirando aos pais uns quilos de centeio para vender, mas eu nunca fiz tal cena. Era assim, muito dura, a vida naqueles tempos: trabalhava-se muito e tinha-se pouco, trabalhava-se sem horário, e sem férias. E, mesmo assim, ainda era por favor que se conseguia trabalho daquelas pessoas que tinham hortas e vinhas para amanhar. Para ceifar, tão urgente e necessária era a actividade, já não era assim. Havia trabalho para qualquer um que aparecesse, mesmo que ceifasse mal. Sob o calor abrasador de Junho e de Julho, dobrado sobre a foice, a ceifa, era a mais dura das fainas do campo, e ainda hoje só de me lembrar disso sinto calafrios na espinha.

Mas nem tudo era desagradável, apesar de tantos sacrifícios no trabalho ainda se cantava, com aquelas vozes tão sadias, que toda gente ouvia com atenção esses cantores. E havia o convívio, os dichotes picantes, atirados às raparigas, tudo na brincadeira, sem maldade. E, sobretudo, tínhamos sempre a esperança de que melhores dias haviam de chegar. Olhávamos para a estrada do carril, onde de vez em quando já passava um automóvel, e sonhávamos com a África, com a Argentina e com o Brasil.

Tudo acabou hoje porque os tais trabalhos do campo, mondar, sachar, ceifar, já não se fazem; todo aquele duro labutar acabou para a mocidade. Com tanta máquina e com as químicas, hoje, colhe-se mais, em menos terreno, e com menos trabalho.

Eu, da minha parte, tirei bem a conclusão de quanto custam os trabalhos do campo. Foi, talvez, por isso que quis aprender um ofício de barbeiro, e lá consegui aprendê-lo. Mas nem tudo eram rosas, havia de tudo um pouco, mas sempre ganhava mais algum, e com menos sacrifícios do que a trabalhar no campo.

continua