terça-feira, 20 de julho de 2010

José Queirós

Foi no Natal de 1983 que a Patrícia ofereceu um caderno de folhas brancas ao avô com esta dedicatória: “Ao avô José Luís. Para contar como foi a sua vida, dos pais, irmãos, e como era a vida em S. Pedro, em África e na Guarda. Beijinhos da Patrícia”. A ideia partiu da Fátima, e em boa a hora a teve, e também em boa hora pensou que era a altura para dar a conhecer a todos os familiares e amigos o conteúdo deste caderno que guardava há vinte anos.

No caderno escreveu José Queirós com a sua caligrafia desenvolta e elegante, a denunciar uma mente aberta e criativa. É uma escrita simples e informal, num tom coloquial que nós tão bem lhe conhecíamos. Eu e o Armando fixámos o texto: arrumámos aqui e acolá, fizemos a ligação quando as ideias apareciam mais soltas, e, nalguns casos, acrescentámos aquelas passagens que não foram escritas mas nos foram muitas vezes contadas, procurando sempre respeitar o estilo e a fidelidade das passagens da sua vida que mantemos na memória e apenas nos limitámos a reproduzir.

José Queirós representa bem o século XX onde se situa toda a sua vida. Nestes escritos ele confronta as mudanças ocorridas no mundo, e espanta-se com elas e, às vezes, não lhe percebe o sentido. Vê facilitismo nas mudanças, admira-se de se ir esbatendo a memória do tempos das dificuldades. O resultado são estes 18 belos quadros evocativos duma época, não muito distante, que muitos de nós ainda viveram. Tempo que é bom ter sempre presente para que os mais novos não o esqueçam.

José era o filho do meio e viveu como que encaixado entre dois irmãos com marcada personalidade: o mais velho António, por muitos considerado como um filósofo e pensador, e o mais novo, Luís, com uma capacidade dedutiva que rondava o brilhantismo, era admirado pelo sucesso dos projectos que empreendia. Talvez por isso ele exprima, por várias vezes, a necessidade de afirmar as suas capacidades, em que sobressai a sua visão universalista do mundo e das transformações por que passou durante a sua vida e, de uma forma talvez tímida, deixar a sua marca: “mas não fui dos piores”, “ lá consegui” , “não me saí mal”. E faz isso, não para marcar a diferença que nunca verbalizou, mas para se reafirmar à sua maneira

Vai o livro enriquecido com as ilustrações do neto Miguel, as quais recriam de forma bem original, pelos olhos de um jovem que já pertence ao mundo novo, as imagens suscitadas pelos textos. Ao Veiga que fez a revisão final dos textos, o nosso agradecimento.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Recordações (18)

A encerrar

Estou já a chegar ao fim do caderno, e fico com a impressão de que ainda falta muita coisa para contar. Escrever aqui trouxe-me à memória boas recordações, possivelmente a nossa memória guarda melhor as boas do que as más. Mas algumas das boas recordações eu omiti, porque já não as posso partilhar com quem comigo as viveu.

Vejo o mundo actual tão diferente daquele em que eu me criei que às vezes até me custa a acreditar como é possível haver tanta coisa para tanta gente. Na minha infância, nós aproveitávamos as coisas até ao limite: os fatos, as camisas, os sapatos nada se estragava, os restos de comida eram para os animais, as roupas velhas eram cortadas para fazer fios e tecer mantas. Nós não sabíamos o que era "lixo" porque nada se deitava fora.

O que antes era tão difícil de conseguir hoje parece tão fácil. E vejo muita gente a viver bem sem trabalhar, e não consigo perceber como conseguem. Os jovens de hoje têm a água quente a sair da torneira, o conforto de uma casa de banho, e poucos sabem o trabalho e as voltas que dá um grão de trigo antes de se transformar numa fatia de pão.

A necessidade da vida, a vida dos negócios, trouxeram-me muitos conhecimentos, e permitiram-me estabelecer relações com muitas as pessoas. Eu sempre gostei do diálogo, e dei-me com pessoas de todo o tipo: encontrei muita gente inteligente e boa, e esses, para mim, foram os mais tratáveis e menos desconfiados. Mas até com os menos evoluídos podemos aprender, e devemos saber tratar com eles, pois que todas as pessoas têm o seu valor.

Quando um dia partirmos desta vida, de cada um de nós ficarão as obras que fizermos, e sobretudo as que são de utilidade para todos. Quanto a mim, confesso, fui mais para projectos do que realizador.

Na nossa vida, chega um momento, em que as recordações já parecem contar mais do que o momento presente. Vou vivendo os dias que me faltam com essas lembranças e fico satisfeito quando os mais novos gostam de me ouvir contar como foi a minha vida.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Recordações (17)

Tempo da Guarda


Quando surgiu a possibilidade de trespassar uma taberna na Guarda, lá fui com a Aida, e um tal Manuel China, que conhecemos através do Zé Vitorino, e que nos levou à tal taberna. Que afinal era também casa de hóspedes e estava ali, no Largo dos Correios, onde paravam as camionetas todas, sítio de movimento. E logo se fez negócio, onde se gastou quase tudo o que tinha trazido de África, quase 45 contos.

Com muito trabalho, levantávamos logo cedo para acender o fogão de lenha com carqueja, faziam-se logo umas coisas para vender na taberna, bacalhau frito tínhamos sempre, porque havia muita gente a gostar, vendia-se bem, uma posta daquelas metida num molete e já não se ficava mal.

Às quartas e aos sábados tínhamos sempre mais freguesia, vinha aquela gente das terras ali perto, uns a tratar coisas na cidade e muitos vinham vender coisas à praça porque nesses dias era mercado. Na feira do S. João e do S. Francisco então era uma enchente, não tínhamos mãos a medir. Muitas vezes vinha nesses dias a Celeste do Zé Vitorino a ajudar na cozinha e dava bom jeito.

Penso que ali na Guarda, embora fossemos pessoas simples com poucos estudos, conquistámos uma certa posição. Muita gente nos estimava, eram os vizinhos gente com muita educação e pessoas estabelecidas na cidade que fomos conhecendo. O Pinto, da Casa de Utilidades, uma grande cabeça, homem muito sério que nos vendia louças e coisas que precisávamos, e que ia lá casa a dar injecções porque tinha sido enfermeiro. Falávamos de muita coisa, e começámos a ver que estávamos do mesmo lado quanto às ideias.

Com outras pessoas tinha um certo receio de falar, era aquele medo, mas quando foi em 1958 que o Humberto Delgado se candidatou a Presidente, muita gente se começou a abrir, até o António Cesteiro, que só lá ia beber um copo e quase nunca dizia nada, me confessou que tinha sido sempre do contra. Fomos muitos, ali ao largo do Hotel Turismo, ver o Humberto Delgado que subiu à varanda do hotel para falar ao povo, com o Dr. João Gomes sempre ao lado dele em todo lado, e depois foi uma bicha de carros até ao limite do distrito quando foi fazer campanha para Viseu, mas eu aí não fui.

Passados já tantos anos, a conclusão é que fizemos bem ir para a Guarda, muito trabalho, muitas canseiras, mas também uma vida farta sem grandes problemas. Os filhos foram crescendo, trabalhando e estudando e cada um acabou por tirar o plano à sua maneira para ter uma vida melhor que nós tivemos. Só fiquei com pena que nenhum deles se tivesse lançado na vida comercial, que foi uma coisa que eu sempre gostei.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Recordações (16)

O Regresso de África

Passada a aquela fase mais difícil do princípio, já alguns conhecimentos da vida comercial muitos adquiridos à minha custa, mas também de falar e de ver como faziam os que já lá estavam há mais tempo, e tinham singrado na vida, era altura de pensar no futuro... Com os conhecimentos que já tinha da vida comercial, e como tinha juntado um dinheirito, a minha ideia era lançar-me por conta própria e levar a família para junto de mim. Os filhos estavam a crescer, haviam de abrir os olhos, e logo cada um tiraria o seu plano.

Nós temos boas intenções, mas vida não é como a gente quer, e um dia comecei a sentir-me mal, aquelas febres de África começaram a deixar-me de rastos, e logo pensei o pior. Custou-me muito, mas tive que escrever uma carta à Aida a dizer-lhe que não estava bem. Não contei tudo, fui dizendo que era uma coisa passageira, mas tive que lhe dizer onde estava o meu dinheiro e o que devia fazer para o levantar se acontecesse o pior.

E lá tive de vir outra vez, de barco, muito abatido com a esperança de melhorar mas preocupado pois tinha que começar a vida outra vez de novo. Dessa vez o barco parou nas Canárias onde comprei alguma roupa para o frio pois não trazia nada, e comprei também uma camisola de lã azul para a Aida, lembro-me bem, que a usou durante muitos anos.

Chegado a Lisboa, foi o tempo de fazer as contas com o Madeira e Marques e apanhar o comboio para Vilar Formoso onde tinha na estação, à espera, os filhos com o padrinho Norberto, todos menos o mais pequeno. Eles tinham ido a pé, mas na volta para S. Pedro fomos num carro de aluguer do Augusto, que eu já conhecia.

Em S. Pedro toda a gente me vinha ver, porque tinha chegado de África, e porque estava ainda meio adoentado. Já não estava acostumado àquela vida da aldeia mas lá me fui ajeitando. Mas ficar ali não era vida, naqueles seis anos que estive fora pouco se alterou, o que se via é que muitos tinham partido, uns para África, outros para Lisboa e alguns daquelas terras começavam a partir, a salto, para a França à procura de melhor vida.

Dos filhos, três tinham a escola feita, cá se criaram só com a mãe e com a ajuda do Norberto e da Lucília que eram padrinhos de todos mas sempre os trataram como filhos deles. Ainda foi uma sorte que nós tivemos, muitas vezes nos ajudaram. Estávamos naquela de matutar o que fazer da vida e a conclusão era sempre que tínhamos que sair dali.

Recordações (15)

Seis anos longe da família

África para mim foi uma grande escola, pois eu não sabia o que era a vida comercial, e tive de aprender tudo a partir do zero. Eu tratava de tecidos, confecções, diversos, medicamentos, mantimentos, vinhos, vendia de tudo um pouco. O negócio era feito à base da tal permuta com produtos coloniais, tais como: óleo de palma, coconote, gergelim, chingola e até peles para casacos de um animal do campo, espécie de cabrito do mato, cuja carne é muito boa, e eu só comi uma vez, que me lembre.

Seis anos longe de casa é muito tempo. Nesses tempos não havia outra possibilidade de contactar à distância a não ser pelo correio. Nunca esqueci a minha família, tive sempre presentes as minhas responsabilidades, que não eram tão pequenas com seis pessoas a meu cargo. Às vezes lá recebia uma carta e uma foto, com os nomes dos filhos anotados, a lápis, por trás. Eu fixava longamente essas fotos e sentia um grande vazio dentro de mim, por não poder acompanhar o crescimento dos meus filhos.

Acho que muito se venceu e conseguiu com muito esforço e boa vontade. Esforcei-me sempre, e com grande vontade, para conseguir um bom relacionamento com todas as pessoas bem intencionadas de todas as classes e de todas as ideologias. Sentia que havia, em relação a certas pessoas, diferenças no aspecto social e económico, mas eu consegui sempre a forma comunicativa de me relacionar com elas. Lembro-me do Sr. Patacas e da esposa, e dos pic-nics que faziamos no campo, e de um tal Bicho que estava também sem a família, e que trabalhava no mesmo ramo que eu. E sempre todos me consideraram.

E se alguém não nos aceita tal como somos, é nessas alturas que melhor se ficam a conhecer os seres humanos. Vem ao de cima a sua maneira de ser, e a sua instrução e formação, e tornam-se mais evidentes os seus defeitos e as suas qualidades.

No Sumba, tive também de me relacionar com os naturais, fiquei a conhecer as suas crenças, os seus costumes e a sua maneira de ser, e às vezes impressionava-me a ingenuidade com que encaravam a vida e os seus problemas. Mas também com eles aprendi, e fiz amigos, e só tive pena de a minha cultura não ter sido suficiente para perceber melhor a deles.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Recordações (14)

África Minha

Mas a esperança mantinha-se e passados uns dias houve quem me dissesse: “Você tal dia vai para Santo António do Zaire”. E no dia indicado, lá embarquei numa camioneta da marca Comer, que era para ser entregue a um cliente do Norte de Angola.

As estradas eram as “picadas”, muito danificadas, e a viagem foi bastante acidentada devido às chuvas. A tal ponto as coisas se tornaram difíceis, que a certa altura tornou-se impossível prosseguir viagem, e o dito carro teve de voltar para Luanda. Eu então segui viagem, à boleia, até ao Zaire, mas antes ainda tive de me hospedar em Ambrizete, no hotel do Sr. Morais. Estava sem dinheiro, e a despesa foi paga pela firma Madeira e Marques. Despesa essa que mais tarde, me foi debitada, quando já estava a ganhar, e colocado na vida comercial.

Comércio esse que de princípio não percebia nada. E isto criava-me uma tal angústia que me provocava um grande desânimo. Julgo que se, nessa altura, tivesse dinheiro para custear a viagem, teria logo regressado, como fizeram tantos que eu conheci. Ainda cheguei a falar com alguém e pedir-lhe emprestado dinheiro para a passagem de regresso. Mas essa pessoa aconselhou-me bem, e fez-me ver que tinha desfeito a vida em Portugal e que tinha responsabilidades familiares, e que só tinha um caminho a seguir que era aguentar como os outros. E aí eu decidi aguentar mesmo a valer. Mas muitos deles eu vi sofrer naquelas terras, onde nem tudo era um mar de rosas.

Mais tarde convenci-me que eu não era dos piores e cheguei mesmo a gostar muito de África. Quando abandonei África, muitas coisas me deixaram saudades, aquela gente, aquele clima, as comidas sempre bem confeccionadas. E nunca esquecerei a Moamba, preparada à base de carne de galo ou pato cozinhada com óleo da palmeira. Era um prato de que toda a gente gostava.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Recordações (13)

Uma viagem por mar

Foi sempre uma aspiração minha sair da terra onde nasci, e essa vontade estava agora a realizar-se. Já estava em Lisboa, numa pensão perto do largo do Martim Moniz, e aquele movimento da praça da Figueira, ali perto, causava-me uma grande admiração, pela abundância de produtos à venda, e todo aquele buliço do mundo dos negócios.

E no final da tarde do dia 5 de Março de 1949, parti, no paquete Pátria, rumo a África. Largámos de Alcântara e logo passámos em frente à torre de Belém, única referência em monumentos, para mim que desconhecia Lisboa. E na margem direita, no crepúsculo daquele final de tarde, já começavam a aparecer os luzeiros das localidades que vão surgindo, a seguir a Lisboa. Quando passámos a última localidade, sei hoje que era Cascais, apenas o mar à nossa volta e um barulho compassado das máquinas, que me iria incomodar por largos dias.

Quando os últimos sinais de terra desapareciam, começava a grande aventura e eu já começava a sentir saudade dos que ficavam. Esta era a minha primeira viagem de barco, e tudo para mim era novidade. Éramos servidos numas grandes mesas, e ser assim servido era algo que me acontecia pela primeira vez na minha vida. No princípio, por não estar habituado, eu nem me ajeitava bem usar a faca e o garfo, ou a descascar a fruta com aquelas facas, mas ficava a olhar os outros para fazer como eles, e acho que não me comportei mal.

Com um fraco convívio com os outros passageiros, porque não os conhecia, lá fui eu naquele mar, um pouco solitário, e sempre a pensar naquilo que me esperava no destino. Ia viajando com tanto sacrifício por causa do enjoo, que desanimei ao ponto de desmaiar já sem forças, porque não comi nada em 48 horas.

Fizemos a primeira escala no Funchal, terra que me deslumbrou pela sua beleza natural, as casas dispostas ao subir da encosta faziam lembrar um presépio. Mas eu não tinha tempo para apreciar estas belezas, e só pensava nos que tinham ficado, e no que viria depois. Em S. Tomé ficámos ancorados ao largo, e vinham grandes barcaças cheias dos naturais da Ilha que encostavam ao barco, para receber e deixar grandes fardos de mercadorias, tudo numa grande azáfama. Eu ficava a olhar aquele espectáculo, e tudo era novo para mim.

E numa manhã de neblina, com muito calor, fomos informados de que estávamos a chegar a Luanda, e iríamos desembarcar naquela tarde.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Recordações (12)

Emigrar!


Como as despesas a aumentar, comecei a ver que não ia ser fácil aguentar o barco, e fui pensando em emigrar para África. Este era o caminho que muitos escolhiam. Havia muitos que saíam, e o meu irmão Luís, terminado o serviço militar, já tinha emigrado para Moçambique, e isso serviu para aguçar ainda mais o meu desejo de fazer o mesmo. Mas era preciso a tal "carta de chamada" sem a qual não era autorizada a saída para África.

Aida acarinhava a ideia, animava-me e incentivava-me. A oportunidade surgiu através de uma prima sua, irmã do Augusto Cavaleiro da Mata de Lobos, que estava casada com um tal Aníbal Madeira, homem que tinha grandes negócios em Angola, e era sócio de uma tal firma Madeira e Marques com sede em Luanda.

Falou-se com aquela gente, e lá chegou a carta de chamada. Depois trataram-se os papéis e aprazou-se o dia da partida. Na noite anterior praticamente não dormi. Saí de casa e deambulei pelas ruas, interrogando-me se não seria essa a última noite que passeava na aldeia. Fui ao palheiro acendi uma candeia que eu próprio tinha improvisado com uma torcida de pano mergulhada num frasco de "Ceregumil". E, como se estivesse a despedir-me, olhei para os magros pertences da lavoura, e para o porco que era toda a riqueza de animais que nos restava.

A mala levava coisa pouca e já estava preparada: uma fatiota, umas mudas de roupa interior, umas camisas, e pouco mais. Numa taleiga de pano, já Aida tinha preparado e arrumado a merenda à base de pão, queijo, umas chouriças, e uma garrafa de vinho. Nem ao menos uma fotografia de Aida e das crianças para lembrança. Naqueles tempos, não se tinha possibilidade de ter estas coisas.

No manhã do dia seguinte, juntou-se um grupo de pessoas à nossa porta, e lá fomos formando um procissão até à Nave, que fica no limite da povoação. Aí fizeram-se as despedidas da mulher e dos filhos. E montado na burra preta da minha mãe, lá fui eu e uns quantos (que haveriam de voltar para S. Pedro com a burra!), a caminho de Vilar Formoso onde iria apanhar o comboio para Lisboa.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Recordações (11)

Serões na província

Quando somos novos sentimos uma grande ansiedade, e um enorme desejo de ser adulto para nos tornarmos iguais aos homens e mulheres que nos rodeiam. E, duma forma natural, sentimos que somos incompletos se não encontramos a mulher que nos complete.

Na minha juventude não havia muitas liberdades de relacionamento com raparigas, mas nós não ficávamos indiferentes, e tudo fazíamos para ficar perto delas, sempre que havia oportunidade para isso. Para os jovens o tempo mais alegre era o tempo que passávamos nos bailes, animados pelos tocadores da concertina ou da guitarra. Claro que, na forma de aboradar as raparigas, não se permitiam avanços, tudo tinha de ser feitos com as normas que respeitassem as tradições dos mais velhos.

Havia o baile mandado,onde todos participavam, e um dava as ordens, "passa por baixo", "passa por cima", "todos ao centro", "troca de pares", "esta não é minha", tudo com muito ritmo e muita alegria. E havia as danças com os pares agarrados, e nós íamos convidar as raparigas, que muitas vezes estavam com as mães, mas nem sempre elas aceitavam dançar connosco.

E havia os tais “serões” em que nas longas noites de inverno nós íamos para um palheiro, e lá nos aconchegávamos todas na palha. Estávamos deitados à luz de uma candeia a petróleo, cujo consumo era dividido por todos, porque todos o frequentávamos. Havia rapazes e raparigas, contavam-se histórias, cantava-se e tocava-se guitarra. Mas tudo tinha de ser feito sob o olhar atento de algumas mulheres mais velhas que estavam ali como que a guardar as mais novas, e evitar que algum rapaz tivesse alguma atitude mais atrevida.

As meninas trabalhavam a fazer meia, na renda e outras a fiar os linhos. Os rapazes, deitados na palha a fingir que dormiam, às vezes iam-se encostando às raparigas, às vezes, roçando as mãos pelas mãos delas, elas fingiam que não percebiam, mas, se “calhavam” com aquele rapaz, davam sinais de corresponder. E trocavam-se olhares furtivos, que as mulheres mais velhas se apercebiam, mas nada diziam, porque aquilo era a lei da vida.

E era ali que muitas vezes se “fabricavam” os casamentos, mas eu confesso não foi o meu caso. Apesar de todas as dificuldades que tive de enfrentar, e já aqui relatei algumas, eu tenho boas recordações do tempo da juventude, que era uma vida bonita e alegre.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Recordações (10)

Tudo o vento levou

Já contei, atrás, os acontecimentos relacionados com a ida falhada do meu irmão António para o Brasil, e de como isso mudou a vida da nossa família, na casa de meus pais. Lembro-me bem, aquilo foi como se um tornado tivesse passado, como se o ventou tudo tivesse levado. Como se pode concluir, a minha vida, nos meus princípios, vividos em casa dos meus pais, não foi fácil nem risonha. Mas foi também uma lição que eu aprendi para a vida, esta de ficar a saber de que não podemos tomar nada como certo nem definitivo, de que a desgraça pode chegar a qualquer momento, sem avisar e quando menos se espera.

Éramos três irmãos, e fui eu o primeiro que casei. Comecei, após o casamento, uma vida nova com poucos recursos, e sem nenhuns auxílios. Recordo-me da grande luta que tive de travar para vencer, para não cair na lama, e para conseguir o pão necessário para cada dia . Tive de aprender de tudo um pouco, agricultura, barbeiro, sapateiro, pedreiro, carpinteiro, tudo trabalhos sem horário de trabalho e sem descanso semanal. Férias nem pensar nisso, e, mesmo assim, conseguimos uma situação económica equilibrada.

Uma das coisas que eu fazia, nesses primeiros anos, era matar, de vez em quando, uma rês, um cabrito, um borrego ou uma ovelha para vender a carne. Com isso fazia algum dinheiro que dava para pagar o custo do animal, e sempre se aproveitavam aquelas partes menos vendáveis da peça, que nós comíamos em casa. Eu gostava de esfolar, tirar as peles, separar as partes, e usava sempre uma faca boa e muito bem afiada numa pedra de esmeril. Certa vez fui comprar um borrego ao mercado de Figueira, e tive de o trazer até S. Pedro, pela arreata, coisa aí para uns 20 Kms de distância. Não sei quem se cansou mais, se eu ou o animal, mas quando chegamos a S. Pedro ele pesaria uns quilos a menos, e, assim, lá se foi parte do lucro.

Enfim, tinha assumido a grande responsabilidade de ser chefe de família que custa mais que ser solteirão. E não podia dar parte de fraco!. Dentro em pouco tempo 1 filho, isso repetiu-se mais vezes até ao número de quatro filhos…

terça-feira, 22 de junho de 2010

Recordações (9)

Tempos da Guerra

José Queirós, conta-nos histórias da sua vida, e fala de tempos de vacas magras


Nos anos da década de 30, viveram-se em S. Pedro tempos difíceis, e que foram agravados pela Guerra Civil de Espanha. Parece-me que a miséria ainda se tornou mais miserável, nesses anos. Nós sabíamos que se defrontavam duas ideologias distintas, e éramos obrigados a tomar posição, havia os falangistas e os "rojos", ou vermelhos. O Bernardo Limão, nosso vizinho, estava casado com a Concha, uma espanhola, e viviam em Espanha. Um dia voltaram para S. Pedro e trouxeram com eles a experiência dos dias de Madrid e das lutas dos sindicatos. E nós ouvíamos, embasbacados, as histórias que nos contavam, e logo acreditámos que aquele era o lado certo.

A maioria do povo da aldeia seguia a orientação religiosa do padre Raimundo, era favorável aos falangistas. No nosso bairro, por influência do Bernardo Limão, uns quantos de nós nutríamos uma maior simpatia pelos vermelhos. Tínhamos uma grande fé de que o mundo tinha de mudar, que tinha de haver mais igualdade, mais solidariedade, e que as crenças antigas tinham de dar lugar a uma nova ideologia. Em certos dias vinha um indivíduo de Nave de Haver, o Nabais, que nos trazia um jornal clandestino, e que nos falava do "homem novo", e de países onde havia terra para todos, onde havia pão e paz.

Mas, na aldeia, vivia-se um clima de medo e desconfiança; nós éramos apontados a dedo, e, à boca pequena, diziam que nós éramos os vermelhos. As notícias que chegavam do resultado da refrega eram vividas com a exaltação das vitórias, ou com o agrume das derrotas. O padre Raimundo, muito confiante do desfecho da guerra, ia, de binóculos, para o alto de Carcidade para ver os bombardeamentos com que os falangistas, dizia-se, arrasavam a cidade de Madrid. E nós víamos passar grandes filas de camionetas que se dirigiam, pela estrada velha entre Fuentes e Alameda, para Ciudad Rodrigo, e transportavam o apoio que Portugal enviava para os falangistas.

Depois, um dia, chegou a notícia de que a guerra tinha acabado, e nós percebemos que o tal mundo novo ainda vinha longe. Mas logo chegaram novas notícias que diziam que a Inglaterra a França e a Alemanha já começavam outra guerra.

E na Casa da Varanda, um após outro, nasciam os filhos, e aumentavam as bocas que era preciso alimentar. E os meios escasseavam.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Recordaçoes (8)

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Pai Relaxado

Na nossa casa, quem tinha que aguentar o barco era eu, o irmão António e a nossa mãe. O nosso pai Francisco, depois de duas viagens à Argentina regressou mais pobre do que tinha ido. Da última vez que regressou, vinha tão roto que esperou que anoitecesse para entrar na povoação, tal era a vergonha que sentia se o vissem com o aspecto andrajoso que trazia. Nos anos seguintes, Francisco passava o tempo dedicado à missão de beber e fumar, e mais nada. Até que fabricou uma cirrose cujas consequências lhe causaram a morte.

Em vida foi sempre chefe de família, sem dúvida, mas era só para vender os valores móveis e para gastar o dinheiro mal gasto. Vivíamos uma vida sempre em guerras. Francisco era um homem de feitio difícil. Eu creio que ele era um desadaptado. Deambulava pelo povo com um casaco muito coçado, azul, de surrobeco, as botas sempre com os atacadores desapertados. Conversava, filosofava e dava-se bem com toda a gente. Mas, em casa, infernizava a vida da nossa mãe, chegava a bater-lhe. E estava sempre a implicar com o António. Um dia atirou-lhe com um caçoilo e feriu-o na testa. A nossa mãe tudo aguentava. O filho mais novo, o Luís, que fazia uma grande diferença dos outros irmãos era o seu preferido, e tinha para com ele atenções especiais. Até chegou a comprar-lhe uma guitarra.

O António, talvez por ser o mais velho, foi o mais sacrificado. Quis emigrar para o Brasil mas as coisas correram mal. Quatro meses depois de partir regressou a casa, doente e derrotado. Não passou de Santos onde uma doença pulmonar o atingiu, e o obrigou a retornar. Para a casa agrícola, este insucesso, foi um rombo desastroso. Aquela ida abortada custou 9 mil escudos, e para a suportar tivemos de vender três propriedades boas perto do povo, e as vacas de trabalho. E até vendemos a porca que tínhamos cevado para a matança, e que pesava 140 quilos.

Quando casei, a relação do meu pai comigo mudou bastante: quando ia a minha casa era bem recebido e obsequiado pela Aida, e o entendimento começou a ser outro.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Recordações (7)


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José Queirós continua a escrever as sua memórias (capitulo 7)...

Mocidade, que saudade...



Na minha infância gostava muito de ler livros, revistas e jornais. E já jovem adulto, apesar de todos os revezes na minha vida e das dificuldades que tinha de passar, eu cheguei a assinar “O Primeiro de Janeiro”. Recebia-o todos os dias pelo correio e muitas vezes tinha de escondê-lo das outras pessoas da aldeia, que achavam isso muito estranho, e que criticavam as pessoas que liam e a quem chamavam, com desprezo de "doutores". Havia como que inconscientemente uma atitude que repudiava a inovação, a mudança, o progresso. Tudo o que se desviasse do ritmo da vida, tudo o que viesse alterar aqueles costumes antigos, era criticado, às vezes de forma mordaz, ou acintosa. E que nos magoava muito, pois nos levava a excluir-nos e a sentirmos-nos um pouco como “marginais”.

Mas isso não significa que não houvesse coisas boas. Hábitos e práticas que se perderam e que ainda hoje recordo com saudade. Os jogos da adolescência que eram uma mostra de força e virilidade como, por exemplo, o jogo do ferro. E havia o jogo do “Bete” em que um jogador lançava uma bola de pau para ser “batida”, com um pau ou bastão, por outro jogador (que estava dentro de um circulo ou “ring”) . Este jogador, enquanto a bola pairava no ar, corria pelas balizas dispotas, em duas fileiras, à volta do campo. Os adversários procuravam apanhar a bola ainda no ar (às vezes usando um chapéu ou uma gorra basca), e devolviam-na à base. Logo que a bola “riscasse” o “ring”, o corredor tinha de se imobilizar numa baliza. Era um jogo de equipas, duro e tinha alguns riscos. Por ter sido atingido com uma bola, morreu anos mais tarde, na sequência disso, o Carlos, um filho da Ti Miquelina Forneira.

Gritar Ó barro…ó barro… era a forma de chamamento lançado da “Lancha do Forte” para se juntar a mocidade sempre que era necessário para resolver problemas, ou para beber a pinga que se fazia pagar aos rapazes que eram de outra freguesia, e pretendiam casar na nossa. A paga, nestes casos, era mais ou menos de cem escudos. Naquele tempo era bastante, chegava para tudo beber à vontadinha, e comer pão e salada de bacalhau até fartar e sobejar.

Também se gritava "Ó barro!" quando os rapazes atingiam 15 anos (mais ou menos), e tinham de "pagar o vinho". Era, nessa altura, que se dava a transição para homem. Que muitos de nós não chegámos a ter a certeza de o ser...

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Recordações (6)


José Queirós fala dos traumas da sua adolescência


Uma bicicleta para dois

Mas nem tudo foram rosas, e eu sofri muitos traumas de infância, muitas angústias que eu interiorizava só para mim e que não contava para os outros. Lembro-me, por exemplo, que quando era bastante criança, o meu crescimento para pessoa adulta era muito lento, muita gente já me dizia que eu não passava de um anão. Afinal cresci, e, hoje, julgo-me um homem bastante normal.

Mas quando era novo, e durante muitos anos, eu vivi com medo obsessivo de morrer tuberculoso. Era algo que era superior a mim, e que me provocava uma grande angústia. A tuberculose era naquele tempo a doença da moda, que se considerava incurável, e muitos foram os que partiram para sempre, alguns que eu conheci e deixaram saudades.

Os que ficámos foi para viver uma vida pouco vivida, às vezes experimentando o aguilhão da fome. Não raras vezes as nossas mães chegavam a esperar que a galinha pusesse o ovo para matar a fome aos filhos. Mas mesmo assim lá nos criámos, crescemos e, hoje, somos pessoas normais. S. Pedro do Rio Seco era uma aldeia com muita vitalidade, que naquele tempo era muito habitada, havia mais de seiscentas pessoas. Alguns que emigravam era para a Argentina e Brasil, e mais tarde para África e, por último, para a Europa. Muito se transformaram as coisas nesta geração!

Não havia transportes como hoje há. Nós tínhamos uma bicicleta lá em casa, e recordo-me que aos sábados, já aprendido o ofício, ia eu fazer barbas a uma terra já do concelho do Sabugal chamada Aldeia da Ponte. Acompanhava-me o meu irmão Luís, dez anos mais novo do que eu. Como só tínhamos uma bicicleta para os dois, um de nós usava-a primeiro, e passado um ou dois quilómetros, deixava-a na berma, para ser utilizada pelo outro, que vinha atrás caminhando a pé. Este, por sua vez, fazia o seu percurso, ultrapassava o andante, e voltava a deixar a bicicleta, mais à frente, na berma, para o outro. E íamos assim, alternando, até chegar ao destino, talvez uns 20 quilómetros de distância.

Os transportes motorizados começaram a aparecer mais ou menos pelo ano de 1930, eram sobretudo automóveis de aluguer e camionetas. Antes dessa data os transportes faziam-se em carros puxados por machos e cavalos, e outras deslocações era a pé, às vezes fazíamos, mais ou menos, 50 quilómetros por dia. Mas eu sei como isso é árduo, custa bastante, e os pés chegam a inchar ao ponto de não caberem nos sapatos!

(contínua)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Recordações (5)

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Trabalhando para ganhar a vida

Mal deixei a escola, logo iniciei uma vida nova. Comecei a sentir a grande responsabilidade de ter de ganhar dinheiro para me vestir e calçar, porque os meus pais não o tinham para mo dar. Comecei então a trabalhar para outros, e a ganhar "o jornal" ou "jeira" que correspondia a um dia de trabalho, e que ia do nascer do sol até ao pôr-do-sol. E o que se ganhava era, mais ou menos, dez escudos por dia.

Havia quem conseguisse dinheiro de outra maneira, tirando aos pais uns quilos de centeio para vender, mas eu nunca fiz tal cena. Era assim, muito dura, a vida naqueles tempos: trabalhava-se muito e tinha-se pouco, trabalhava-se sem horário, e sem férias. E, mesmo assim, ainda era por favor que se conseguia trabalho daquelas pessoas que tinham hortas e vinhas para amanhar. Para ceifar, tão urgente e necessária era a actividade, já não era assim. Havia trabalho para qualquer um que aparecesse, mesmo que ceifasse mal. Sob o calor abrasador de Junho e de Julho, dobrado sobre a foice, a ceifa, era a mais dura das fainas do campo, e ainda hoje só de me lembrar disso sinto calafrios na espinha.

Mas nem tudo era desagradável, apesar de tantos sacrifícios no trabalho ainda se cantava, com aquelas vozes tão sadias, que toda gente ouvia com atenção esses cantores. E havia o convívio, os dichotes picantes, atirados às raparigas, tudo na brincadeira, sem maldade. E, sobretudo, tínhamos sempre a esperança de que melhores dias haviam de chegar. Olhávamos para a estrada do carril, onde de vez em quando já passava um automóvel, e sonhávamos com a África, com a Argentina e com o Brasil.

Tudo acabou hoje porque os tais trabalhos do campo, mondar, sachar, ceifar, já não se fazem; todo aquele duro labutar acabou para a mocidade. Com tanta máquina e com as químicas, hoje, colhe-se mais, em menos terreno, e com menos trabalho.

Eu, da minha parte, tirei bem a conclusão de quanto custam os trabalhos do campo. Foi, talvez, por isso que quis aprender um ofício de barbeiro, e lá consegui aprendê-lo. Mas nem tudo eram rosas, havia de tudo um pouco, mas sempre ganhava mais algum, e com menos sacrifícios do que a trabalhar no campo.

continua

terça-feira, 11 de maio de 2010

Recordações (4)

José Queirós fala da sua ida à escola

Por volta dos sete anos, a minha mãe levou-me à escola pela primeira vez. Lembro-me que fui bem recebido pelo professor, mas isso não apaziguou o medo que levava apertadinho no coração. Eu já sabia que os professores batiam muito nos alunos, era sobretudo à base de reguadas nas mãos. E eu não escapei a esses castigos, mas confesso que não terei sido dos mais atingidos.

Gostávamos, claro, da brincadeira, e, por isso, o tempo passava mais alegremente no recreio do que na sala de aula. Como não tínhamos relógio, não estávamos a horas certas na escola. Quando isso acontecia, o professor colocava-se atrás da porta de entrada, e com uma verga de marmeleiro ia castigando todos os que não tinham chegado à hora certa.

Mas havia outros castigos: quando não sabíamos as lições ficávamos retidos na hora do recreio, que era das 12 horas às 14, ou seja na hora do almoço. E com esse castigo não se almoçava o tal pão e marmelo, ou o pão e uma sardinha, ou uma tigela de caldo.

Recordo-me perfeitamente de fazer o exame da 4ª. Classe. Éramos seis rapazes, e todos soubemos responder muito bem às perguntas da mesa do júri.

Feito o exame deixava-se a escola, e lá voltávamos nós a andar descalços e a saborear as férias de verão, procurando os ninhos dos pássaros, indo nadar para a ribeira, e ajudando os mais velhos nas fainas agrícolas.

Mas quando, depois de feito o exame da 4ª classe, a escola reabriu em Outubro, eu já não voltei. Estava tudo cumprido a respeito de instrução, mas fiquei com muitas saudades da escola, e com um grande vazio dentro de mim.

E assim nos criámos, mas nem todos, que alguns que eu conheci não tiveram essa sorte, como foi o caso do Davide, que eu tive ocasião de o ver o fechar os olhos para sempre.

contínua

domingo, 9 de maio de 2010

Recordações(3)

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José Queirós continua a falar-nos do seu tempo de menino

As nossas armas de brincar eram os “trabucos”, feitos de pau de sabugueiro que íamos cortar atrás dos quintais. Extraíamos o miolo do pau e ficava um canudo oco. As nossas balas eram buchas feitas de linho. Soprando, a arma atirava a alguns metros de longe, e, assim, metíamos medo uns aos outros.

Fazer um pião de um pau de carrasqueira, ou cortar um pau de giesta e aguçá-lo dos dois lados para fazer a xona para os jogos, ou fazer os assobios de cana e as relas na quaresma, ou fazer um "picachão", tudo era fruto da nossa habilidade, pois não havia brinquedos a vender. O canivete era, para nós, a ambicionada ferramenta, mas custava dinheiro, e nem sempre se conseguia. E quando se achava algum, como aconteceu comigo certa vez na Fonte Robre, era uma grande alegria.

A minha irmã, Maria Augusta, morreu com 14 anos. Tenho uma vaga memória desses dias, mas acredito que a minha mãe deve ter sofrido muito. Naquele tempo parece que a morte era uma coisa mais natural, convivia-se mais de perto com ela. Morria-se em casa, aceitava-se o facto como um desígnio da Providência.

Naquele tempo, a pouca assistência médica, a pouca higiene, a má alimentação, tudo contribuía para apressar o fim. Eu lá escapei, mas também me lembro de ter sido visto pelo médico, deitado ao canto da sala, do lado direito, numas mantas estendidas. Eram as tais febres intestinais do tempo estival. E com uma doença denominada pneumónica, em 1918, ainda me lembro de morrer tanta gente, famílias quase completas, tinha eu na altura seis anos.

Naquele tempo, no Verão, sobretudo no mês de Agosto, era uma "limpeza". Até se dizia quando morria um anjinho: "Coitadinho, agostou-se". Recordo-me de ver morrer o Davide: pediu água à mãe dele, e foi a última que bebeu.

E, com uma diferença de 17 anos do António e uma diferença de 10 do José, nascia o nosso irmão Luís . Isto aconteceu depois de o nosso pai ter vindo da Argentina a última vez. A minha mãe tinha mais de 45 anos, e na aldeia toda a gente ficou espantada com o nascimento deste filho serôdio.

continua

segunda-feira, 26 de abril de 2010

recordações(2)

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José Queirós continua a evocar a sua infância, em S. Pedro do Rio Sêco

Naquele tempo não havia dinheiro para comprar nada, nem peixe, carnes ou frutas, comia-se o que produziam os campos. Se o ano vinha bom havia que economizar, mas se o ano era mau alguns perdiam a vergonha e mendigavam, e outros até roubavam. Muitos que eu conheço lá se criaram deste modo, e agora suspeito que já não se lembram. Porque agora tudo é diferente.

A ementa diária era, quase sempre, um caldo feito de batatas, cebola e couve, acompanhado de pão centeio muito escuro. Recordo-me de comer este caldo numa tigela, feita de um barro espanhol muito avermelhado, a que nós chamávamos o "caçoilo".

Algumas vezes fritava-se um pouco de toucinho de porco a que chamávamos chicharros. Esmagávamos as batatas cozidas na banha derretida do toucinho, e isso já era considerado um grande petisco. No verão, com umas caixas em cima de um burro, vinha, de vez em quando, um comerciante de Vilar Formoso, vender sardinhas. A nossa mãe comprava duas sardinhas as quais, a dividir por quatro, meia sardinha para cada um, era o que nos calhava nesse dia. Um ovo estrelado comia-se raramente; na primavera, quando as galinhas punham mais, ia-se vender os ovos no mercado do dia 8, em Almeida. Frutas havia no verão com fartura: figos, abrunhos, maçãs e peras. Havia uns abrunhos selvagens a que chamávamos “cagoiços” por provocarem frequentes diarreias. Bananas, vi-as eu pela primeira vez, já adulto, em Lisboa, e laranjas eram uma raridade.
Na mercearia da Senhora Laura, no Largo do meio-do-povo, comprava-se algum açúcar, o café de cevada e pouco mais.

E não desprezávamos os frutos e as ervas silvestres : as bolotas de azinheira, assadas, eram bem boas ( que a ti Luzia trazia de Espanha à espera de receber, em troca, um punhado de batatas), comiam-se as azedas que cresciam nos prados, e as meruges nos regatos. Havia as amoras das silveiras das quais guardo uma indelével recordação: foi uma vez que eu subi num muro de pedras soltas para as colher, e, qual a minha surpresa, o muro caiu, e eu sobre ele. As pedras marcaram-me para sempre o rosto com uma cicatriz. Nunca mais me esqueci do local, foi na Caleja do Ribeiro, e às vezes ainda me revejo a repor as pedras, e reparo numa delas que era muito arredondada, e julgo que foi essa a que me marcou.

(contínua)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Recordações (1)

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José Queirós, em 1983, começou a escrever as suas memórias. A Patricia oferecera-lhe um caderno onde ele começou a tomar notas, de uma forma simples e até algo desorganizada. Já depois da sua morte, vim eu a encontrar, entre os seus papéis, um maço de folhas, onde ele tinha organizado essas notas de uma forma mais finalizada, embora ainda com lacunas. São esses escritos que hoje se começam a publicar no blogue.


Guarda, abril 1986

Pediram-me para escrever alguma coisa sobre o passado, contar a história da minha vida. E foi para isso que a minha neta Patrícia me deu este caderno de folhas brancas. E eu fixo o olhar nestas folhas que me pedem angustiadamente para que nelas escreva qualquer coisa.

Mas escrever é sempre difícil para quem não sabe. Porque escrever é falar para nós, mas é também falar para os outros. Já tantas vezes aqui cheguei com o lápis afiado, e as palavras ficam presas nele, não querem sair, as ideias ficam coladas umas às outras, e, outras vezes, parece que querem sair todas ao mesmo tempo.

Da névoa do tempo começam a surgir vagamente algumas formas. Nas recordações deste tempo que confronto com os dias de hoje, vejo como tudo era o diferente. Aquele mundo da minha infância era o mundo velho: era diferente a maneira de comer e a maneira de morar nas casas, vivíamos com muito poucas comodidades.

Recuo aos tempos da minha meninice e vejo-me, aí pelos meus 6 ou 7 anos, num palheiro com os meus irmãos e a minha mãe. Quando se entrava, na parede, em frente do lado esquerdo, acendia-se o lume, e do lado direito estava uma cama com uma colcha vermelha de fabrico artesanal. Vivíamos nós neste palheiro porque a nossa casa, que ficava mesmo ao lado, estava arrendada para servir de posto da Guarda Fiscal. A renda era de nove mil reis, dinheiro que nos ajudava a viver. Ainda me lembro de ver os oficiais da Guarda que vinham a rondar os soldados, montados nos seus cavalos.

Mas os nove mil reis eram um gasto que a Guarda não queria, ou não podia, suportar; ou por que havia inveja daquele dinheiro, e logo se construiu uma casa, muito à pressa, para servir de posto da Guarda Fiscal. E lá voltámos nós à nossa casa. Por essa altura o meu pai, Francisco, estava emigrado em Buenos Aires na Argentina, onde já tinha ido pela segunda vez. Nós éramos três irmãos: o mais velho, o António, a Maria Augusta e eu.

A nossa mãe, recordo-me que trabalhou muito para nos criar; tinha que trabalhar para os outros, para que os outros, em troca, lhe lavrassem as terras. Sachar, mondar, semear tudo isso era com ela. Recordo-me que uma vez me levou para o Malavado, e nos pontões do rio Seco caí para a água, e a minha mãe tirou-me a fatiota e embrulhou-me com o avental. Algumas vezes quando ia trabalhar para o campo, deixava-me com a avó Margarida que ainda conheci, alta e magra.
(Contínua)

José Queirós

segunda-feira, 15 de março de 2010

Fazer renascer a Casa da Varanda

No ano passado este blogue viveu centrado na doce recordação da mãe Aida. Foi um momento de recordar, diria até de acertar algumas contas com o passado.

Vieram ao blogue importantes e sentidos depoimentos, soltaram-se emoções, e até se devolveu uma avó e uma bisavó àqueles que não a conheceram. Numa palavra, a família ficou mais rica. Aida e José teriam gostado desta reunião familiar informal.

A iniciativa deixou sementes. Está criada a ideia de um fundo familiar: O Fundo Unindo Gerações. O Armando já enviou a primeira folha a todos os descendentes de Aida e José e respectivos cônjuges.

Para não deixar morrer estas ideias há agora que as acarinhar. Vamos recuperar a Casa da Varanda