sexta-feira, 31 de julho de 2009

Os bons malandros do Liceu (2)

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Do grupo dos colegas do Liceu, o Carvalheira era o mais erudito. A alcunha, que ainda guarda, era "Isaac", talvez pela postura patriarcal que nos inspirou. O Isaac é um homem sensível, um poeta, por vezes desadaptado da realidade como todos os poetas. Escreve num português cristalino, com um estilo elegante e sóbrio. Uma amizade que o tempo só serviu para fortalecer.

Carvalheira fala da Ti Aida

A primeira vez que encontrei a TiAida foi na pensão Guardense, ali atrás do muro dum jardim com tílias, numa rua a subir. Competia-me fazer, no salão do liceu, um exame de transição. Para quem o não souber, era um género de purgatório em duas folhas de stêncil lilás titubeante, por onde tinham que passar os trânsfugas como eu, que o divino chamara, mas não quisera escolher. E entre fanerogâmicas e monocotiledóneas tudo acabou em bem.
Depois vivi um ano lá em casa, numas águas-furtadas do largo das camionetas. E comecei a ajustar o passo com o mundo, que vinha desacertado. Carregava às costas o conflito nunca resolvido entre o século e o claustro, de que o resto da malta nunca ouvira falar. E o pouco que se podia fazer aconteceu ali.
O inverno rangia os dentes no vidro da clarabóia, e eu despejava a água na bacia esmaltada mas nem molhava a ponta do nariz. Mais tarde ouvi dizer que estas coisas nos marcam a vida, mas não é verdade. O que nos marca a vida são mais os banhos da alma do que os banhos do corpo.
Isso foi há tantos anos que já nem me lembra quantos. Mas foi preciso esperar pela era dos blogues para conhecer melhor a TiAida. Que era uma mulher de prendas, e de modos, e deixara para trás as luvas e o chapelinho. Mas ela levara tão a sério as opções que fez, que nada disso se via. E eu tinha apenas intuições, palpites, a gente aprende a vida a comparar o que vê. Sempre a vi livre e segura, macia e tolerante. Muito mais não sabia.
O que nela mais apreciei, e melhor usufruí, foi o homem que teve e os filhos que criou. Sei hoje que era ela o pão daquilo tudo. Da inteligência do homem, da sua argúcia lúcida, do modo como ficava, pensativo, a fazer esperas à vida, às vezes rangendo os dentes. O Ti Queirós soube sempre donde vinha o mal, que é o saber maior que pode haver.
Eu nunca cultivei invejas de ninguém, mas tive tentações disso. De ter inveja daqueles a quem tocou esta mãe. A vida foi-lhe afinal muito mais dura do que eu alguma vez imaginei. Mas nunca lhe vi nem um lamento, nem um destempero, nem uma cedência. É essa a pedra de toque da condição humana.

Jorge Carvalheira

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