terça-feira, 18 de agosto de 2009

o Tio António

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António Queirós era o filho mais velho de Francisco e Cândida, teve uma vida difícil, irmão mais velho parece que é sempre mais sofrido. Conheci-o com lavoura estabelecida, vacas, vitelas, carro de bois, trabalhava como um escravo, mas na verdade ele foi um intelectual falhado. Escrevia com uma caligrafia elegante, a traduzir um pensamento lúcido, se fosse preciso fazer alguma exposição ou escrever uma carta ao "Salazar", isso era com ele. Como comenta o Armando:

"A propósito da sua vocação para a escrita há um caso que ilustra bem esse facto. Havia em S.Pedro uns rendeiros que tinham um problema com os proprietários das terras e que habitavam em Lisboa. Para resolver a questão pediram ao ti António Queirós lhes fizesse uma carta, expondo as suas razões.
Em resposta a essa carta os senhorios comunicaram que aceitavam os argumentos expostos mas acrescentavam, um pouco como censura, que poderiam ter tratado do assunto directamente, sem necessidade de se terem dirigido a um advogado para lhes fazer a carta."

A vida foi madrasta para António, ficou-lhe a mágoa duma ida para o Brasil que abortou em Santos, foi a doença que o recambiou de volta, mas eu acho que António não tinha feitio para se misturar nas "manadas" de emigrantes que iam para os cafezais do interior do Estado de São Paulo. Ele pensava com a própria cabeça, pagou por isso. Francisco viu nisto um fracasso e contabilizou o prejuízo das despesas sem retorno, não lhe perdoou, ficou uma relação amarga que Cândida tentava apaziguar.
Eu frequentava muito a casa dele, o meu primo Amílcar tem a minha idade, havia a casa nova e a casa velha onde brincávamos longamente, íamos levar as vacas ao Pedro Chamusca ou ao Barroco do Bicho, de onde o tio António certo dia trouxe um enorme verdugo. Às vezes ia com o tio ao Vale de Igreja onde fazia umas regadeiras enormes para enxugar a terra. De lá trazia feixes de canas de milho às costas, as pessoas da aldeia perguntavam por que é que António não arranjava um burro! Toda a minha fraca cultura da lavoura, os nomes das peças do arado, do carro de bois, das operações sobre a terra, lavrar, aricar, gradar, debruar, tudo aprendi com ele...
Falava-me da minha mãe com muita ternura, ele também apreciava e valorizava as qualidades da cunhada Aida.

Luís

1 comentário:

Armando disse...

O tio António era aquele membro da família que conseguia concentrar todas as qualidades e defeitos dos Queiróses.
Não gostava muito de ir com ele para o campo porque facilmente se esquecia da hora da merenda e da hora de regresso.
Lembro algumas conversas em que tentou explicar-me coisas que para minha idade e para o meio em que vivia eram autênticas revelações.
Dizia-me por exemplo que o que se aprendia na escola na disciplina de história não era bem assim.Não conseguia perceber o alcance do que me queria dizer, mas fiquei com essas conversas na memória.
Devia ser um dos poucos homens de S.Pedro, ou até o único, que se permitia discutir com o padre.
Uma vez disse à tia Ana que o tio estava no Meio do Povo a disscutir com o padre, o que terá gerado um certo conflito matrimonial.
Nos dias em que a família se juntava, p.e. na matança do porco, tinhamos que esperar sempre por ele
porque havia sempre umas vacas que ainda não estavam empalhadas ou uma faixa de milho que era preciso ir buscar, ou simplesmente porque encontrava alguém no caminho com quem lhe dava prazer conversar.
Esta característica de retardatário
foi herdada e pervalece ainda em alguém da família.
Nas ceias da mantança do porco, não podia faltar o figado do animal,naquele dia sacrificado, e que era um dos seus petiscos favoritos.
Também nesta área deixou herdeiros que ainda apreciam essa coisa esquisita que dá pelo nome de iscas (há gostos para tudo).
A propósito da sua vocação para a escrita há um caso que ilustra bem esse facto.
Havia em S.Pedro uns rendeiros que tinham um problema com os proprietários das terras e que habitavam em Lisboa.
Para resolver a questão pediram ao ti António Queirós lhes fizesse uma carta, expondo as suas razões.
Em resposta a essa carta os senhorios comunicaram que aceitavam os argumentos expostos mas acrescentavam, um pouco como censura que poderiam ter tratado do assunto directamente, sem necessidade de se terem dirigido a um advogado para lhes fazer a carta.
Também desapareceu cedo este nosso tio, talvez com a mágoa de não ter visto um mundo que sonhou melhor, mas com ao mesmo tempo com a satisfação de já ter percebido que o seu único filho viria ter uma vida bem menos penosa do que a sua.